sábado, 14 de junho de 2008

Direitos Humanos

José Damião de Lima Trindade *

A idéia de direitos “humanos”, isto é, de direitos próprios a todos os seres humanos, é relativamente recente, sob o prisma histórico. Claro, podemos garimpar pepitas filosóficas sobre direitos “naturais” de todos os seres humanos já na Grécia e na Roma antigas. Mas, naquelas sociedades baseadas em trabalho escravo e em castigo corporal, semelhantes idéias não podiam mesmo ter qualquer operância prática, figurando como esquisitices especulativas de cérebros isolados.

Segunda coisa a considerar: a construção histórica dos direitos humanos nada teve – e nada tem – a ver com suposições benevolentes, tais como “evolução espiritual” da humanidade, aumento da “consciência civilizatória”, ou o surgimento de “líderes generosos” conduzindo nações em direção à fraternidade humana. Essa construção histórica de direitos tem a ver – isto, sim – com o surgimento, em cada época, de atores sociais interessados nesses direitos, capazes de acumular forças suficientes para impô-los a outros atores sociais com interesses opostos.

Foi preciso esperar o esfacelamento do império romano, foi preciso esperar o longo florescimento e a crise longa do feudalismo ocidental, para que, já no final da fase histórica de existência desse modo de produção e de organização social na Europa, a idéia de direitos humanos “naturais” pudesse encontrar os atores sociais interessados em levá-la à prática. Esses atores, como se sabe, foram as classes sociais sulbalternas do feudalismo: o vasto campesinato servil da gleba, os artesãos e trabalhadores livres urbanos e, acima de todos, comandando-os, a burguesia. Enriquecida com o comércio local e inter-regional, com os bancos, com as grandes navegações, com o extraordinariamente lucrativo tráfico de escravos africanos, com a troca de mercadorias entre o velho e o novo mundos, com o saque colonial e até com a pirataria marítima ( principais fatores da acumulação “primitiva” de capital que veio a financiar a eclosão da Revolução Industrial), a burguesia vinha de uma longa coexistência relativamente pacífica com a nobreza e o clero – para ficarmos no caso da França, mais representativo desses processos europeus. Enquanto os camponeses eram periodicamente massacrados em suas rebeliões por direitos elementares, a burguesia emprestava dinheiro a juros a barões e bispos, principais senhores feudais, e a príncipes e reis endividados pelas guerras intermináveis entre as cabeças coroadas da Europa.

Mas chegou um momento em que as amarras econômicas e políticas do feudalismo passaram a incomodar a florescente burguesia. Um exemplo: eram tantos os impostos de passagem entre os feudos, que encareciam o comércio de mercadorias entre distâncias maiores dentro da própria Europa. Outro exemplo: o burguês que prosperou em sua oficina de manufatura e pretendesse contratar mais empregados, teria de se conformar com uma produção modesta (entenda-se: com lucros modestos), pois os camponeses, conquanto muito numerosos, eram servos da gleba, sem liberdade pessoal de ir e vir, e muito menos de se alugarem a patrões nas cidades. Ademais, sendo de mera subsistência a economia interna de cada feudo, com pouquíssimos excedentes para troca, ela impedia a massificação de um mercado consumidor capaz de absorver e permitir a expansão da incipiente produção capitalista urbana. Para mudar tudo isso, seria preciso superar as relações econômicas feudais, mudar as leis, obter o poder político. Mas o poder político era privilégio da nobreza e do clero – quando não apenas do rei absolutista. Fechava-se o círculo. Para ganhar mais dinheiro, a burguesia precisaria implodir o feudalismo e seu sistema de direito desigual.

Detenhamo-nos um pouco neste ponto: estamos hoje tão habituados com a idéia de igualdade jurídico-formal de todos perante a lei, que é difícil imaginarmos uma sociedade em que o direito positivo fosse diferente para classes sociais diferentes. Pois era assim no feudalismo. Tomemos as Ordenações Filipinas, estatuto português do feudalismo tardio, que vigorou no Brasil até 1830. Veja-se seu Livro V, título 38 (“Do que matou sua mulher por a achar em adultério”): “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade”. Ou então, o título 80 do mesmo Livro (“Das armas que são defesas e quando se devem perder”), item número 13: “Defendemos outrossim que pessoa alguma, em todos os nossos reinos e senhorios, não traga, de dia nem de noite, nem tenha em sua casa, arcabuzes de menos comprimento que de quatro palmos em cano; e sendo peão o que o trouxer, seja açoitado e degredado para sempre para as galés. E, sendo pessoa de maior qualidade, seja degredado para o Brasil para sempre[1].

Por volta dos séculos XVII e XVIII, a burguesia européia dava-se conta de que, para maior prosperidade, precisava de... liberdade e igualdade. Entenda-se bem: liberdade de comércio, liberdade empresarial, liberdade para contratar força de trabalho, em suma, liberdade para lucrar. Nenhuma cogitação de libertar escravos, ou de libertar as mulheres da opressão doméstica, ou de liberdade aos povos das colônias. O máximo de liberdade “alheia” que conviria à burguesia seria o fim da servidão dos camponeses à gleba feudal, para que, assim tornados “sujeitos de direito”, pudessem “livremente” alugar seu corpo e sua alma, em condições de perfeita “igualdade contratual”, aos empreendedores urbanos. E a igualdade ? Bastaria a igualdade perante a lei, isto é, igualdade formal perante a nobreza e o clero, fim dos privilégios políticos ou econômicos de nascimento. Nenhuma cogitação de colocar um ponto final nas desigualdades econômicas e sociais concretamente existentes, em rápida expansão durante a primeira Revolução Industrial. Surgia o tríptico lema revolucionário: liberdade, igualdade e, para emoção maior, também fraternidade !

Foi assim que as milenares idéias do direito “natural”, atualizadas pelo Iluminismo, finalmente saltaram dos textos filosóficos para a sociedade. A burguesia, que jamais se importara com direitos de quem quer que seja, precisava de um arcabouço ideológico atraente para se apresentar à população e, assim, liderar milhões de camponeses e artesãos urbanos na luta sangrenta que desencadeou contra aristocratas e padres. Serviu-se do jusnaturalismo, particularmente do jusnaturalismo de base racional, para seus propósitos revolucionários na França – fez o mesmo por toda parte, malgrado variações locais de intensidade ou de “ilustração”.

Tomando o poder pela insurreição armada, a burguesia logo tratou de editar seu panfleto revolucionário: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1789. O “homem” do título, não era referência ao gênero humano, mas apenas ao sexo masculino, e era tomado de modo perfeitamente abstrato, sem qualquer consideração quanto ao modo real de sua existência, à sua inserção em classes.

Os quatro “direitos naturais” enunciados no artigo 2° daquela Declaração (liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão) foram contemplados desigualmente. A liberdade recebeu sete artigos: dois definem seus contornos gerais, três tratam da liberdade individual, um se refere à liberdade de opinião, e outro à liberdade de expressão. A propriedade só foi abordada no artigo 17, mas beneficiou-se de um tratamento enfaticamente protecionista – foi o único direito qualificado como “inviolável e sagrado”. A segurança só foi contemplada no artigo 12, e de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de resistência à opressão, a Declaração nada lhe dedicou, a não ser a menção inicial. Há uma ausência memorável: a igualdade não figurou entre os direitos “naturais e imprescindíveis” proclamados no artigo 2º, muito menos foi elevada ao patamar de “sagrada e inviolável”, como fizeram com a propriedade. Além disso, quando mencionada depois, o foi com um este sentido: os homens são iguais – mas “em direitos” (artigo 1°-), perante a lei (artigo 6°-) e perante o fisco (artigo 13). Ou seja: a igualdade de que cuida a Declaração é a igualdade civil (fim da distinção jurídica baseada no status de nascimento). Nenhum propósito de estendê-la ao terreno social ou político.

Houve outros silêncios eloqüentes sobre várias das dimensões da igualdade evitadas pelos constituintes franceses: o sufrágio universal sequer foi mencionado, a igualdade entre sexos não chegou a ser cogitada, o colonialismo francês (ou europeu em geral) não foi criticado, a escravidão não foi vituperada (e era uma realidade dramática naquele tempo), o direito ao trabalho foi esquecido etc.. Assim, tão importantes quanto as idéias que a Declaração contém são as idéias que ela não contém – e que, a julgar pela acumulação filosófica já existente no final do século XVIII, a “Razão” esperaria que fossem acolhidas nesse texto. Os deputados constituintes reproduziram no início da Declaração, de modo abstrato, princípios do jusnaturalismo que gozavam de grande prestígio (liberdade, igualdade), mas, em seguida, ao “traduzirem-nos” nos demais artigos, promoveram uma seleção cuidadosa de temas, sentidos e ênfases – seleção guiada, evidentemente, pelo filtro de seus interesses e conveniências de classe. Por mais que tivessem bebido nas fontes filosóficas iluministas dos “direitos naturais e universais”, seria excessivo esperar que esses burgueses legisladores se mostrassem dispostos, de motu proprio, a pavimentar uma estrada jurídica que apontasse para alguma espécie mais real de igualdade social. Albert Soboul bem anotou: “As contradições que marcaram sua obra explicam o realismo dos Constituintes, que pouco se embaraçavam com princípios quando se tratava de defender seus interesses de classe ”[2].

A história da Revolução Francesa é tão apaixonante quanto didática em mostrar que, conforme predominava no processo revolucionário uma ou outra classe social, ou fração de classe, ou aliança de classes, o direito imediatamente produzido variava conforme os interesses da força social ou do bloco de forças dominante em cada momento. Por falta de espaço, tenho de resistir à tentação de prosseguir neste assunto. Apenas registro que, após três Constituições produzidas no período revolucionário (1791, 1793 e 1795), cada uma delas correspondendo a uma correlação social de forças diferente, o saldo foi este: liberdade individual, igualdade civil (jurídico-formal), remoção dos resquícios do feudalismo para liberar completamente o desenvolvimento das relações sociais capitalistas, a propriedade privada alçada ao patamar de direito absoluto e as novas instituições moldando uma república oligárquica fundada no voto “censitário” (os direitos de votar e ser votado circunscritos apenas aos cidadãos “ativos”, isto é, que ultrapassassem certo patamar de propriedade ou renda). Nada restou sobre direitos sociais do povo, muito menos sobre sobre o direito ao/do trabalho. Corrijo-me: houve, sim, uma lei “trabalhista”, a lei Le Chapelier. Indignada com sucessivas greves reivindicatórias, a burguesia fêz aprovar na Assembléia Constituinte, em 14 de junho de 1.791, essa lei que levou o nome de seu relator, proibindo qualquer associação operária com vistas a recusar trabalho ou a exigir salários melhores. A lei Le Chapelier teria vida longa, só foi revogada em 1887, e serviu de modelo ao redor do planeta para a criminalização de grevistas e sindicalistas.

Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815 perante os exércitos da coligação antifrancesa, iniciavam-se quinze opressivos anos em que, tendo sido restauradas monarquias extremamente reacionárias por toda a Europa continental, foram abolidos quase todos os vestígios de liberdade – exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento e de lucro. Foi o período conhecido como “Restauração”, marcado pela caça sistemática aos militantes revolucionários, a imprensa colocada sob rígida censura, os reis e o Papa empenhados num esforço feroz para expurgar do ambiente cultural europeu aquelas “perigosas” idéias de liberdade e igualdade. Mas isso não significou o retorno ao ancien régime anterior a 1789: as relações econômicas capitalistas já estavam perfeitamente consolidadas e, politicamente, a grande burguesia francesa (assim como a do restante da Europa) não teve maior dificuldade em acomodar-se a um regime que não interferiu na acumulação de capital.

Ao mesmo tempo, a Revolução Industrial, que transbordava rapidamente pela Europa continental, encarregou-se de completar a desgraça dos trabalhadores: expropriação em massa de camponeses, migração forçada para as cidades, trabalho assalariado em condições infames, jornadas de trabalho de até 18 horas, salários vis, para não falar da expansão explosiva de legiões de desempregados sobrevivendo à beira da fome. Como a produtividade das fábricas mecanizadas trazidas pela Revolução Industrial era muito maior do que a das anteriores manufaturas, elas não tinham necessidade de absorver toda a imensa força de trabalho que fora “liberada”, seja pela expulsão dos camponeses das áreas rurais, seja pela ruína dos remanescentes urbanos do antigo artesanato individual. Em conseqüência disso, milhões de trabalhadores vieram a compor o que seria chamado de “exército industrial de reserva”: multidões de desempregados que nos momentos de expansão da economia retornam ao assalariato, para serem remetidos novamente à “reserva” ao primeiro sinal de retração econômica. Como essa “reserva” humana nunca se esgotasse, ela logo passou a desempenhar a função econômica de manter baixos os salários dos que estivessem empregados.

Claro: os ideólogos do liberalismo logo justificaram como “natural” a desigualdade social. O principal deles, Adam Smith, morto no final do século XVIII, havia publicado a obra que se tornou a “bíblia” do capitalismo – “A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas” – na qual colocou num altar o egoísmo e a competitividade entre os indivíduos, aconselhando que, para a prosperidade das “nações”, os governos deviam deixar completamente livre a mão invisível do mercado. Eis o que outro humanitarista liberal, o senhor Patrick Colquhoun, escreveu em 1806, em seu A treatise on indigence: “Sem uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que os ricos são produto do trabalho, ao passo que o trabalho pode resultar somente de um estado de pobreza...

A pobreza, portanto, é um ingrediente indispensável e por demais necessário da sociedade, sem o qual as nações e comunidades não poderiam existir num estado de civilização”[3].

Os efeitos combinados da Restauração política e da Revolução Industrial instauraram na Europa, ao longo da primeira metade do século XIX, o que pode ser chamado de uma primeira grande crise dos direitos humanos, desde que haviam sido formulados pelos filósofos racionalistas do século XVIII. Ela se configurava de duas maneiras: como estagnação e como agravamento. Era como estagnação no plano político, devido à resistência, tanto da reação monárquica como dos liberais, em estender os direitos políticos aos trabalhadores. E era como agravamento no plano econômico-social, pois, além da convergência dessas duas forças no propósito de manter a igualdade em estado de raquitismo jurídico-formal (recusa em ampliá-la ao campo social), a Revolução Industrial havia também piorado dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores.

Até medidas instituídas com o propósito exterior de “aliviar” os tormentos dos desvalidos muitas vezes terminavam por agravá-los de outras formas: “O liberalismo econômico se propôs a solucionar o problema dos trabalhadores de sua maneira usual, brusca e impiedosa, forçando-os a encontrar trabalho a um salário vil ou a emigrar. A Nova Lei dos Pobres de 1814, um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro das novas workhouses (onde tinham que se separar da mulher e dos filhos para desestimular o hábito sentimental e não malthusiano de procriação impensada) e retirou a garantia paroquial de uma manutenção mínima”[4]. Nessas ocasiões em que a miséria batesse à porta, nem sequer vestígios de cidadania se preservariam: “... os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de direitos políticos que possuíssem. Essa incapacidade permaneceu em existência até 1918”[5]. Outra lei “trabalhista” foi o Código Britânico de Patrões e Empregados, editado em 1823: chegava a punir os trabalhadores com pena de prisão, caso rompessem o contrato de trabalho – e, pela mesma transgressão, impunha aos empregadores multas discretas.

No plano filosófico, começava a ocorrer um deslocamento fundamental: a burguesia passava-se de armas e bagagem para o positivismo. O jusnaturalismo anterior servira a seus propósitos revolucionários, mas, uma vez consolidado o capitalismo, o positivismo passava a ser-lhe mais “adequado”, na medida em que batia-se por uma neutralidade axiológica – completa abstenção de juízos de valor – na análise da sociedade, que deve ser tomada apenas como “objeto” de observação, exatamente como faz um geólogo ao examinar um pedregulho. Essa demanda de neutralidade axiológica conduziria os juristas positivistas a circunscreverem seu estudo à investigação metódica do direito positivo, a suas normas e à forma prescrita pelo próprio ordenamento jurídico para sua produção/modificação – sempre sem manifestação de juízos de valor. A norma jurídica, portanto, também se converte em “objeto de observação”, ao qual o jurista deve se debruçar sem “admiração ou crítica”. A tarefa do jurista “científico” consistiria em explicar – pelas regras da própria lógica jurídica – e aplicar o Direito existente, sem indagações “extrajurídicas” quanto à sua legitimidade social. Iniciava-se, a partir daí, um duradouro divórcio entre Direito e Moral.

Nesse ambiente sombrio, surgiu uma novidade: os trabalhadores começaram, politicamente, a andar com as próprias pernas. Associações operárias, mesmo duramente reprimidas por toda parte, começaram a se organizar também por toda parte. A greve, mesmo ilegal em todo o planeta, acabava acontecendo como instrumento de autodefesa operária. A indignação com a desigualdade social brutal expressou-se também no plano ideológico durante a primeira metade do século XIX, inicialmente por meio dos questionamentos dos chamados socialistas utópicos ou românticos – dentre outros, Saint-Simon e Fourier, na França, e Owen, na Inglaterra. A idéia, em síntese, era esta: criar comunidades igualitárias e autogeridas de trabalhadores que, pela força do exemplo e por sua superioridade moral, terminariam por “seduzir” toda a sociedade circundante. Chegaram a criar colônias desse tipo até nos EUA e no Brasil. Essa convicção generosa e ingênua não os deixou perceber que a lógica do capital é apenas a busca de lucros, sem se abalar minimamente por princípios morais ou racionais. Aquelas ilhotas de comunismo, cercadas de capitalismo por todos os lados, fracassaram, claro. Mas estava inaugurada a crítica moral sistemática ao modo de organização social fundado na desigualdade de classes, antes esboçada apenas literariamente ou tratada marginalmente por raros pensadores.

Logo depois, em meados daquele século, surgiria a crítica muito concreta de Karl Marx, que se valeu dos recursos da investigação científica. Fazendo uma dissecação minuciosa e exaustiva do capitalismo, Marx demonstrou que era o trabalho que criava sobrevalor econômico, e não o capital, nem a lei da oferta e procura. Se o modo de enriquecer no capitalismo era contratar empregados na produção, isso ocorria porque os capitalistas exploravam os trabalhadores. Antes dele, um economista inglês devotadamente liberal, David Ricardo, na sua famosa obra “Princípios de Economia Política e Tributação” (1817) já havia, muito a contragosto, intuido isso. “Se, como argumentava a economia política, o trabalho representava a fonte de todo o valor, então por que a maior parte de seus produtores vivia à beira da privação? Porque, como demonstrava Ricardo – embora ele se sentisse constrangido em relação às conclusões de sua teoria – o capitalista se apropriava, em forma de lucro, do excedente que o trabalhador produzia além daquilo que ele recebia de volta sob a forma de salário. (...) De fato, o capitalista explorava o trabalhador”[6]. Ultrapassando essa percepção quase de senso comum, Marx fez sua demonstração. E concluiu, de modo muito objetivo, que, entre patrões e empregados, os interesses de fundo são contraditórios. Uma sociedade baseada na divisão dos seres humanos entre patrões e empregados é, inevitavelmente, uma sociedade baseada na luta de classes – luta às vezes velada, meramente reivindicativa, outras vezes cruenta. A classe economicamente dominante detém o poder político e faz as leis para assegurar seu domínio de classe. A única possibilidade de “reforma” social está em os dominados obterem o poder político para reconstruírem as relações humanas com base na igualdade, sem exploradores nem explorados, resultando numa sociedade nova baseada nesta máxima: “De cada um, segundo suas possibilidade; a cada um, segundo suas necessidades”. Nunca mais o homem sendo lobo do homem. E enquanto essa luta de classes se desenvolve, a “neutralidade” é impossível ou cínica.

Portanto, rompendo com as idealizações fantasiosas e voluntaristas dos socialistas utópicos, Marx apontou para um programa propriamente político aos trabalhadores: a transformação da sociedade, a superação do capitalismo. Ao final do século XIX, as formulações de Marx já ganhavam terreno na disputa com correntes anarquistas, reformistas ou remanescentes do socialismo utópico, cumprindo para movimento operário, ao menos na Europa e na América do Norte, uma função similar à que, um século antes, o jusnaturalismo desempenhara em relação à burguesia revolucionária: método de compreensão e crítica da sociedade e instrumento teórico para sua transformação – sob o ponto de vista dos explorados e oprimidos.

Também ao final do século XIX, as lutas operárias na Europa e América do Norte se ampliavam consideravelmente, malgrado a truculenta resistência patronal-governamental, e os trabalhadores começavam a obter suas primeiras vitórias. No plano dos direitos civis e políticos, sua luta-símbolo era pelo sufrágio universal, contra o voto censitário, modelo praticado em todas as “democracias” oligárquicas de então. No plano do que hoje chamamos de direitos econômicos, sociais e culturais – indispensáveis a uma sobrevivência com dignidade – as lutas-símbolos eram: melhoria salarial, jornada de trabalho de oito horas (“um terço do dia para o trabalho, um terço para o repouso, um terço para a vivência pessoal e familiar”), assistência à saúde, amparo público na velhice e mesmas oportunidades educacionais para todos. Pensando bem, um programa ainda muito atual. A Alemanha, com sua aguerrida classe operária, foi o primeiro país, sob Bismarck, a instituir algo semelhante a uma tímida previdência social. A luta pela jornada de oito horas ganhou formidável impulso mundial após o episódio dos “oito mártires de Chicago” em 1886.

No século século XX, a reivindicação trabalhista se dissemina e abre brechas na muralha de resistência. Em 1910, iniciou-se o longo e muito violento processo da revolução mexicana, primeira revolução popular a triunfar (e a ser traída...) nos tempos modernos. Em seu auge, após derrubar do poder a velha oligarquia agrário-exportadora, a revolução produziu a Constituição Mexicana de janeiro de 1917, documento jurídico mais avançado socialmente que até então se conhecera: sufrágio universal para homens e mulheres, educação pública laica e gratuita, supremacia do interesse público, reforma agrária, função social da propriedade, liberdade sindical e um imenso e minucioso rol de direitos sociais no longuíssimo artigo 123 da Constituição. A partir dali, podia-se falar de um Direito do Trabalho em fase de sistematização. Mas, como se sabe, aquela bela Constituição mal saiu do papel. As forças conservadoras da burguesia local controlaram o impulso revolucionário popular, e tornaram o dito em não-dito. Contudo, a simples existência daquela Constituição, por fugaz ou esvaziada que tenha sido, criou um precedente e um paradigma importantísssimos para as lutas sociais subseqüentes.

Mas quem, à época, ainda acreditasse poder manter o planeta imóvel, teria, e muito depressa, uma nova e enorme dor de cabeça: apenas dez meses após a Constituição mexicana vir à luz, triunfava a revolução socialista na Rússia, em outubro daquele ano (novembro, pelo calendário atual). Logo em seguida, em 4 de janeiro de 1918, o Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, assembléia decisória que, naquele momento, encarnava o novo poder, proclamou a um mundo atônito a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”. Essa Declaração inaugurou uma ótica completamente nova na abordagem tradicional dos direitos humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato contida na Declaração francesa de 1789, a Declaração russa de 1918 elegia como ponto de partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente) existente, o ser humano que vive em sociedade, em relação contínua com outros homens, e que, portanto, poderá desenvolver (ou não desenvolver) suas potencialidades humanas conforme a posição que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo de organização dessa sociedade venha a favorecer ou a dificultar esse desenvolvimento. Em vez da sociedade hipoteticamente uniforme (isto é, somente juridicamente igualitária), dissolvida idealmente em cidadãos supostamente iguais, a Declaração russa partia do reconhecimento – cautelosamente evitado desde 1789 – de que a sociedade capitalista está mesmo cindida em classes sociais com interesses conflitantes ou irremediavelmente antagônicos. Portanto, em vez da ideação liberal de “neutralidade” social do Estado, a nova Declaração tomava partido, desde logo e abertamente, dos explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder econômico e político os exploradores. Essa Declaração foi, em seguida, incorporada, como Título I, na primeira Constituição socialista russa, de julho de 1918.

Logo em seguida, a Alemanha, cuja classe dominante ficara atônita face a uma tentativa insurreicional operária no final de 1918 (esmagada num banho de sangue), produziu, em agosto de 1919, a Constituição de Weimar, pela qual foram estendidos direitos civis e políticos aos operários e acatados muitos dos seus direitos econômicos, sociais e culturais – destacadamente, muitos direitos trabalhistas.

A partir de então, mobilizações operárias cada vez mais atrevidas no velho e no novo mundos[7], freqüentemente com ardorosa simpatia pela Revolução Russa, fizeram soar o alarme: a burguesia dos países mais adiantados dava-se conta de que precisava entregar os anéis para não perder os dedos. O “reconhecimento” de direitos para os trabalhadores passou, ainda que timidamente, a ter curso progressivo de país para país, dando início à transição do Estado Liberal para o Estado Social. E nem importava a forma política assumida pelos Estados, se fascismo ou democracia – a Constituição fascista italiana, em meados da década de vinte, ao mesmo tempo em que amordaçava o movimento operário, amortecia seu ânimo de combate mediante a outorga de direitos trabalhistas muito concretos. Até a recém-criada Liga das Nações promoveu a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, instituição que, ao contrário da insossa Liga, sobreviveria às intempéries do resto do século e desempenharia papel certamente mais relevante do que imaginaram seus criadores.

Após a grande crise mundial do capitalismo irrompida em 1929, essa tendência se afirma, ainda mais com o advento da muito progressista Constituição Republicana espanhola de 1931, produzida sob a pressão de um ativo movimento operário-camponês de matrizes anarquista e comunista. Direitos trabalhistas e previdenciários, preocupações com educação e saúde públicas, bem como certas cautelas referentes à assistência social, passaram então a figurar (muitas vezes, não passava mesmo de “figuração”) em inúmeras outras Constituições ou textos legais (inclusive na Constituição outorgada por Vargas em 1934), ou a ganhar existência por meio de mecanismos extra-legais de conciliação de classes (caso dos EUA). Muito a contragosto, emergia o reconhecimento, antes hipocritamente negado pelos pensadores liberais, de que o trabalhador é mesmo a parte fraca na relação contratual de trabalho e que, para evitar que marche à rebelião social, precisa receber certa “proteção” – entre nós, essa proteção chegou em 1942, com a CLT. Foi, portanto, nesse contexto de exorcizar a sedução do socialismo pela classe operária que foi sistematizado o Direito do Trabalho no Ocidente, tal como entendido hodiernamente.

Terminada a 2ª Guerra Mundial, tudo se precipita: consolidação da União Soviética como potência econômica e militar, surgimento do “campo” socialista (Europa Oriental e China), fortalecimento dos sindicatos (mais na Europa, América do Norte e Japão), proliferação de partidos trabalhistas, socialistas e comunistas em todo o mundo, acirramento das insurreições de libertação nacional contra o colonialismo europeu na África e Ásia, apoiadas diretamente pela União Soviética, instauração da duradoura “Guerra Fria”. Nessa conjuntura em que a correlação mundial de forças obrigava o capitalismo a recuos importantes, não havia mais condições de retardar o reconhecimento formal dos direitos “humanos” dos trabalhadores. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral da recém-criada ONU, foi o resultado de uma negociação política entre os representantes dos países capitalistas e socialistas, encetando uma tentativa de conciliação entre as concepções liberal e socialista: reafirmou os direitos civis e políticos desenvolvidos a partir da Declaração liberal francesa de 1789 e incorporou os direitos econômicos, sociais e culturais das reivindicações trabalhistas desde o século XIX, enunciados pela Constituição mexicana de 1917 e pela Declaração socialista russa de 1918. Uma conciliação tensa e nunca resolvida de modo satisfatório – boa parte dos direitos econômicos, sociais e culturais ainda hoje não conseguiu escapar da compreensão jurídica conservadora que os relega ao papel de meramente “programáticos”.

Seja como for, desde esse último pós-guerra, o Direito do Trabalho floresceu vigorosamente como instrumento de “harmonia social” nos países capitalistas. E, malgrado nas primeiras décadas do século XX as classes dominantes não pretendessem que fosse mais que uma almofada na luta de classes, é inegável que, onde conseguiu verdadeiramente saltar dos textos legais para a realidade social, o Direito do Trabalho passou a desempenhar relevante papel civilizatório, socialmente progressista – seja por tornar menos penosa a exploração do capital sobre a parcela das massas que a ele teve acesso (caso dos países da periferia do capitalismo), seja por alçar a população de outros países a padrões de vida realmente dignos (caso da Europa, com mais razão na porção escandinava). Esse movimento foi persistente até o final da década de 1970, configurando os trinta anos mais mais frutíferos do Direito do Trabalho.

De lá para cá, inflexão. Os ideólogos da direita liberal do “primeiro” mundo, mirando-se nos exemplos dos governos socialmente regressivos e repressivos de Tatcher, no Reino Unido (1979-1990), e Reagan, nos EUA (1980-1988), resgataram a cartilha econômica e social do velho liberalismo, preservada rancorosamente contra Marx e até contra o “intervencionista” Keynes pelos discípulos modernos de Adam Smith, como Hayeck e Friedman. Eis as máximas dessa cartilha: liberdade para a mão invisível do mercado, fora com o Estado produtor ou regulador, abaixo as regulamentações “artificiais” que sufocam a livre empresa e a livre competição, volta ao “livre” contratualismo nas relações de trabalho, nada de protecionismo social, nada de protecionismo nacional na produção ou no comércio, as portas de cada país devem ser completamente escancaradas para a entrada de mercadorias estrangeiras (não importa quantos empregos sejam suprimidos), os capitais devem ter inteira liberdade de ir e vir entre os países (as pessoas, não, a menos que sejam detentoras de capitais). Acima de tudo, o Estado deve ser “mínimo”, deve privatizar tudo o que for de “interesse” da iniciativa privada (o que for lucrativo) e recuar quase somente às suas funções “clássicas” oitocentistas, como legislar, policiar, julgar, punir, oferecer “garantia jurídica” aos negócios e proteção à propriedade privada – no máximo, realizar certas obras de “retorno” econômico muito demorado, cujo investimento não atraia a iniciativa privada, mas privatizando-as tão logo prontas. Essa cartilha foi a ideologia apropriada à nova etapa do capitalismo internacional desde o final do século XX: o acirramento da tendência à internacionalização do mercado capitalista, velha como o capitalismo (agora, apelidada de “globalização”) e o aguçamento mundial da competição inter-capitalista, impunham a necessidade de o capital monopolizado ascender a novos patamares de acumulação e reprodução ampliada, recuperando o terreno que perdera para os trabalhadores nas décadas anteriores. Essa “globalização” tornou-se viável pela conexão das telecomunicação com a informática – desde a década de 1990, com a instantaneidade fulminante de um toque de teclado, bilhões de dólares cruzam e descruzam oceanos e continentes. O capital “financeiro”, resultado da fusão operada ao longo do século XX entre o capital industrial e o capital bancário, pode, finalmente, como nuvem de gafanhotos, ficar dando voltas ao planeta à busca de rendimento especulativo, quebrando países, gerando desespero social, não importa, o que importa são lucros !

A agenda neoliberal adotada pelo FMI, BIRD, BID, OMC e outras agências internacionais sob controle dos países capitalistas centrais foi “atualizada” para a América Latina em novembro de 1989, pelo “Consenso” de Washington. O neoliberalismo logo proclamou-se a si mesmo como o pensamento final da História, portanto “único” remanescente. E encontrou a paisagem quase inteiramente livre de obstáculos para agir, pois seu nascimento coincidiu com a grande inversão da correlação mundial de forças, no início da década de 90, que se completava com o desmoronamento do bloco socialista da Europa Oriental, seguido de restauração do capitalismo naqueles países.

Aliviadas, sentindo-se de mãos novamente livres, as classes dominantes em todo o planeta trataram logo de ensaiar passos retomar o que, por força de pressão operária ou por medo da revolução social, haviam cedido nos setenta anos anteriores. O movimento de redução da desigualdade social que, malgrado desuniforme no espaço e descontínuo no tempo, vinha progredindo em várias partes do mundo entre as décadas de 30 e 70 do século passado, mesmo fora do “campo” socialista, foi abruptamente detido na entrada dos anos 90. Salvo exceções muito localizadas, desde então a desigualdade e a pobreza, muitas vezes degradantes, mantiveram-se no mesmo patamar em algumas regiões, tendem a ampliar-se em outras e, em outras ainda, aprofundam-se dramaticamente. Reanima-se, em todo o mundo, a contradição entre uma “igualdade” meramente jurídica, reservada aos de baixo, e a liberdade econômica (esta, real) das elites.

Levado de roldão, o Direito do Trabalho paralisa-se ou recua por toda parte – porque, por toda parte, esse é o movimento atualmente experimentado pelas relações de trabalho. Do Brasil, nem precisamos falar, está tudo em nossas memórias recentes. Mas lá fora ocorre o mesmo – aliás, porque tudo começou mesmo lá fora. Meros exemplos: em junho de 2004, o sindicato dos trabalhadores em telefonia da Alemanha “celebrou” um acordo coletivo de trabalho com a empresa Siemens, ampliando a jornada de trabalho de 35 para 40 horas semanais, sem o correspondente acréscimo remuneratório, e pondo um fim aos abonos natalino e de férias, como modo de evitar que uma fábrica de 2000 empregados se transferisse para a Hungria. Um pouco antes, os trabalhadores metalúrgicos desse país haviam sido forçados, para postergar o desemprego, a aceitar mais horas extras, sem remuneração adicional. Logo em seguida, as entidades patronais do país propuseram a introdução da jornada de 50 horas semanais, “para evitar a transferência de empregos ao exterior”, ao mesmo tempo em que a Confederação do Comércio defendia a redução das férias anuais, dos atuais 29 dias, para uma semana. Na Áustria, Holanda, Dinamarca e Bélgica, esse “exemplo” alemão passou imediatamente a ser brandido aos sindicatos em todas as negociações. Quanto às férias anuais remuneradas, a pressão patronal-governamental européia é por seu encolhimento, e mira-se nos exemplos do Japão, onde, na média já baixou para 18 dias anuais, e dos EUA, de apenas 12 dias anuais. Na França, cresce a pressão empresarial para estender a jornada de trabalho dos empregados que, no ano 2000, havia sido reduzida para 35 horas. No Reino Unido, mais de um quinto dos empregados já trabalha acima do limite aceito pela União Européia, que é de 48 horas por semana. Em agosto de 2004, em seu Relatório anual sobre a Europa, o FMI concitou a União Européia a “estimular o aumento do total anual de horas trabalhadas nos 12 paíse que usam o euro”. O FMI também tem insistentemente “aconselhado” a União Européia a cortar os “gastos” com seguro-desemprego, aposentadorias e pensões públicas. Por aí, vai. Se houvesse muito espaço disponível, caberia aqui um rol soturno, muito mais longo, desses reveses interminados.

Já surgem, inclusive, desde há algum tempo, os “teóricos” da subserviência social a proclamar a “morte” do Direito do Trabalho, sua “desnecessidade”, o retorno necessário ao contratualismo “puro” e “livre” entre empregados e empregadores. O Direito do Trabalho, com sua regulação “excessiva”, seria um “estorvo”, uma “excrescência paternalista”. Morte ao poder normativo da Justiça do Trabalho, morte a toda legislação protecionista, que prevaleça o “negociado” sobre o “legislado” e que se devolva aos indivíduos a “liberdade” para buscar seu próprio lugar ao sol, sem FGTS, sem seguro-desemprego, sem previdência pública, pois os “encargos” sociais encarecem a produção, diminuem a competitividade e estimulam a informalidade... No Congresso Nacional brasileiro, há dezenas de proposituras com esse norte.

Nessa guerra pelo regresso social, não falta sequer, como arma ideológica, o recurso ao preconceito quimicamente puro: o Direito do Trabalho seria um ramo jurídico “secundário” ou “inferior” na frondosa árvore do Direito, seria desprovido de natureza “científica”, a Justiça laboral não compartilharia da “nobreza” da Justiça (curiosa essa recorrente nostalgia aristocrática no Direito...), bastaria o Direito Civil, verdadeiro fiador de relações humanas “naturais”. Sussurra-se, não se ousa dizer claramente, mas é isso o que se diz.

Pois foi nesse cenário de pesadelo que Domenico Di Masi, sociólogo italiano do trabalho, propôs, no ano 2000, o conceito de “ócio criativo”, um conjunto de atividades prazeirosas de livre escolha individual, que poderiam substituir o tempo dedicado ao trabalho economicamente produtivo, pois este, a começar pelos países desenvolvidos, já estaria em marcha rápida para ser “abolido” pela acelerada introdução de inovações tecnológicas no processo produtivo, que “liberariam” o ser humano da necessidade de trabalhar ou, ao menos, de trabalhar tanto. Recentemente, Di Masi chegou até a estimar que o estágio atual da tecnologia aplicada à produção já permitiria que todos os seres humanos trabalhassem apenas 3 horas por dia, 5 dias da semana, sem que recuasse a oferta de bens necessários à vida.

Mas fica a indagação incômoda: isso seria possível em qual tipo de sociedade humana ? Nesta sociedade, em que o aumento veloz da produtividade da força de trabalho, gerado pelo progresso tecnológico apropriado privadamente, acarreta, em vez da redução generalizada da jornada, a dispensa de milhões de trabalhadores de osso e carne ? Nesta sociedade, se não interrompermos essa marcha em direção à insensatez e ao colapso, o antigo “exército industrial de reserva” terminará englobando, muito em breve, a maioria dos humanos, apontando, no limite, para esta estúpida e paradoxal situação: de um lado, praticamente toda a produção massiva sendo realizada por máquinas desenvolvidíssimas, quase auto-operadas, sob mera supervisão de decrescente grupo de controladores; mas, de outro lado, a maioria da humanidade desempregada, vegetando no limite mais abjeto de sobrevivência, sem qualquer poder aquisitivo para adquirir as mercadorias produzidas pelas máquinas maravilhosas. As máquinas de propriedade privada se deteriam ante o “esgotamento” planetário do mercado consumidor, enquanto às multidões marginalizadas só restaria se comportar como na metáfora de Marx: a natureza nos ensina o que acontece quando há dois cães e um só osso.

Até meados do século XX, os economistas do liberalismo ainda riam desse tipo de prognóstico do capitalismo, que desqualificavam como “catastrofista”, sustentando que os empregos que a tecnologia suprimisse da atividade produtora de mercadorias seriam “compensados” por novos postos de trabalho abertos no comércio e no setor de serviços. Imaginavam, por suposição, que os capitalistas “renunciariam” à introdução nesses setores de tecnologia substituidora da força de trabalho humana. Outros economistas liberais sustentavam que, como o capitalismo cria continuamente novas “necessidades” humanas, por mais artificiais, supérfluas ou frívolas que sejam (como mascar chicletes ou seguir modas), sua satisfação demandaria sempre a contratação de novos trabalhadores – como se também a produção da frivolidade estivesse imune à tecnologia, ou como se, nesta sociedade de desigualdade crescente, todos pudessem, ilimitadamente, ter acesso ao frívolo.

A dourada possibilidade aritmética de Domenico Di Masi só seria possível numa sociedade sem desigualdades econômicas importantes entre as pessoas, em que a ciência e a tecnologia criadas pelo talento da humanidade pudessem ser apropriadas pelo conjunto da sociedade, aumentando, sim, ininterruptamente, a produtividade da força de trabalho – mas com o propósito consciente, socialmente planejado, não de gerar mais lucros, mas de reduzir progressivamente a jornada de todos. Seria, digamos assim, para ficarmos em nosso tema, um modo de superar a crise capitalista do Direito do Trabalho mediante a universalização do direito ao trabalho, um trabalho cada vez menos penoso e menos extenuante para todos.

Passa da hora de concluir estas reflexões. Retomo a indagação que a elas deu título: terá o Direito do Trabalho chegado a seu esgotamento histórico? Desculpem-me a falta de originalidade, mas isto dependerá novamente de como evoluirá a...correlação social de forças, na qual estamos todos inseridos e com a qual, se estivermos dispostos a tomar partido, podemos, sim, interagir criticamente. O futuro não está de antemão traçado, podemos escolher entre sermos agentes socialmente influentes ou inermes. Mesmo se recearmos retomar as grandes narrativas construtoras-reconstrutoras da solidariedade social, ainda podemos ficar com algo muito palpável, este onipresente argumento inevitável: a necessidade de determos o desmoronamento em direção à barbárie social que, não nos iludamos, já ronda nossas próprias portas.

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José Damião de Lima Trindade é Procurador do Estado, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, foi presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo – APESP, e é autor de “História Social dos Direitos Humanos” (Editora Peirópolis, SP. 2ª edição, 2006).



[1]Silvia Hunold Lara (organizadora), “Ordenações Filipinas, Livro V”, 1999, São Paulo, Companhia das Letras, págs. 151 e 254.

[2]Albert Soboul, “A Revolução Francesa”, 7ª edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, pág. 48.

[3] Citado por T. H. Marshall in: “Cidadania, classes sociais e status”, Rio de Janeiro, Zahar, 1967 pág. 78.

[4] Eric J. Hobsbawm, “A Era das Revoluções”, 9ª edição, Paz e Terra, São Paulo, 1996, págs. 186-187.

[5] T. H. Marshall, op.cit., pág. 72.

[6] Eric J. Hobsbawm, op. cit., pág. 263.

[7] Só para ficar em exemplos brasileiros: a greve geral paulista de 1917 e a greve nacional de 1918.

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