sábado, 14 de junho de 2008

CONTRA INFORME

CONTRA INFORME

DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA SOBRE O CUMPRIMENTO DO

PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

PELO ESTADO BRASILEIRO

RESUMO EXECUTIVO

Introdução

1. A finalidade do Contra Informe se inscreve no marco geral da construção de uma metodologia e de instrumentos de monitoramento da realização dos DESC no Brasil. O núcleo do processo centra-se na produção de informações alternativas sobre os processos de vigência dos DESC em sua contra-face: a) com a responsabilidade do Estado (em seus diversos poderes e esferas) de REALIZAR os direitos através de medidas legislativas, administrativas e políticas, de modo singular, através de políticas públicas (gerais, específicas, universais e focalizadas para grupos sociais vulneráveis) que se desdobram em marco legal e jurisprudência (no âmbito Legislativo e Judiciário) e em programas, projetos e ações com a devida previsão de finalidade, abrangência, sistemática de monitoramento e avaliação e previsão e execução orçamentária (no âmbito do Executivo); b) com a responsabilidade das organizações da sociedade civil, sobretudo os movimentos sociais e as ONGs, no monitoramento vigilante dos compromissos e das responsabilidades do Estado e na promoção de iniciativas modelares, para o que concorrem de maneira significativa a necessidade de domínio dos instrumentos e mecanismos de monitoramento, a construção de indicadores adequados, a capacidade de produção e sistematização de informações e práticas, a incidência nas instâncias de participação direta e de controle social de políticas públicas, a capacidade de articulação e formulação em espaços autônomos de organização (redes, fóruns e outros modelos), entre outros aspectos. Assim que, como sociedade civil, o centro da preocupação com o processo de monitoramento está no empoderamento das lideranças, das organizações, redes, fóruns e espaços autônomos e independentes de organização da sociedade civil em vista da ampliação da capacidade de formulação, discussão e incidência junto aos órgãos públicos em vista da realização dos DESC. Nesta medida, entende-se, cumpre-se a finalidade de cooperação da sociedade civil, preconizada nos documentos internacionais de direitos humanos.

2. Os objetivos que orientam o Contra Informe são os seguintes: Objetivo Geral: Contribuir no processo de monitoramento dos compromissos do Estado com a realização dos DESC no Brasil, implementando processos de capacitação e de produção de informações a partir da atuação das organizações populares com ênfase na perspectiva do fortalecimento da organização popular e do controle social de políticas públicas e das diversas ações do poder público (em seus diversos poderes e esferas). Objetivos Específicos: 1. Sistematizar e formular metodologias e promover ações no campo do monitoramento da realização de direitos humanos, com recortes diversos que levem em conta o ponto de vista das populações que têm os direitos violados, sua capacidade de incidência em políticas públicas e a sistematização de práticas dessas organizações; 2. Desenvolver dinâmicas metodológicas que permitam a construção de indicadores referenciais para realização do monitoramento em direitos humanos; 3. Difundir as observações, recomendações e conclusões provenientes tanto do Comitê DESC como dos Relatores Especiais e das entidades que têm atuação na área de direitos humanos; 4. Incidir para que o poder público adote políticas que levem em consideração as Observações e Recomendações dos Comitês internacionais e também para que as organizações da sociedade civil as tenham em conta nos processos de controle social das políticas públicas; 5. Potencializar e articular ações locais e gerais da sociedade civil, ampliando a interlocução e os processos de luta popular e de controle social das políticas e dos recursos públicos.

3. A coordenação do processo de construção do Contra Informe é de responsabilidade de quatro redes e articulações nacionais que têm presença significativa em todo o território nacional: a Articulação dos Parceiros de Misereor, com mais de 280 organizações brasileiras que são apoiadas pela agência de cooperação Misereor, da Alemanha; o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que reúne cerca de 400 organizações locais de todos os Estados do País com atuação na defesa e promoção dos direitos humanos; a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma DhESCA Brasil) que reúne cerca de 40 organizações nacionais com atuação em DhESCA; e o Processo de Articulação e Diálogo entre as Agências Ecumênicas Européias e suas Contrapartes Brasileiras (PAD Brasil e EuroPAD), que reúne 150 organizações brasileiras apoiadas por sete agências ecumênicas de cooperação da Europa. Esta coordenação realizou reuniões periódicas para avaliar o processo e animar a dinâmica de sua implementação. Para o suporte do trabalho, contou com uma Secretaria Executiva, sediada no IBRACE, em Goiânia. Participaram diretamente da construção do documento 50 organizações e redes nacionais e internacionais com presença no Brasil e quase 500 organizações estaduais ou locais, em dois Seminários Nacionais e 27 Audiências Estaduais, no período de 2005 a 2007.

4. O texto do Contra Informe é constituído de duas partes. A Parte Geral faz uma avaliação da situação geral dos DESC no Brasil, sobretudo tomando em conta que o Comitê considerou como fatores impeditivos fundamentais para a implementação do PIDESC em suas Observações Conclusivas. A Parte Específica apresenta dez capítulos nos quais estão apreciados os direitos contidos no PIDESC (a opção por reunir diversos direitos visou facilitar a análise). Cada um dos Capítulos é construído com os seguintes eixos de articulação da leitura e do posicionamento: a) Situação Geral do Direito, no qual é feita uma leitura da situação com base em informações disponíveis, a fim de identificar o quadro do cumprimento do direito; b) Legislação e Jurisprudência, no qual se identifica a legislação e as decisões judiciais mais relevantes em cada direito, para mostrar o compromisso do Estado com a garantia de um marco legal para a efetivação dos direitos; c) Políticas Públicas, no qual se analisa o compromisso do Estado na realização dos direitos, medido pela ação em políticas públicas e tendo em conta a perspectiva orçamentária, a abertura do Estado na produção e implementação das políticas, contrastado com o nível de envolvimento, participação e controle social das organizações da sociedade civil nestes espaços e processos; d) Iniciativas da Sociedade Civil, no qual faz-se referência a algumas ações e processos em cada direito, a fim de mostrar o nível de compreensão e comprometimento dos diversos agentes organizados da sociedade com o tema dos DESC; e) Sugestões de Recomendações, no qual há a apresentação de sugestões que expressam as expectativas da sociedade civil em relação às Observações Conclusivas a serem emitidas pelo Comitê e ao Poder Público brasileiro. Neste Resumo Executivo colhemos apenas aspectos da situação geral de cada direito, sem substituir a necessidade de leitura do texto completo.

5. O texto do Contra Informe tem como referência o Informe Oficial, emitindo posicionamentos sobre ele e fazendo uma leitura independente dos temas propostos em cada parte e capítulo. Por isso, ao mesmo tempo em que apresenta uma avaliação do documento oficial, também se afasta dele, produzindo uma análise distinta que lhe pode ser complementar, sempre crítica. O texto é construído tendo como interlocutor principal o Comitê DESC/ONU, a quem é prioritariamente dirigido. Por isso, tem uma redação às vezes demasiadamente técnica. Mesmo contemplando leituras transversais de diversos temas, sempre procura trabalhar, ao máximo dos recursos disponíveis, com leituras e recortes de gênero, etnia-raça, geração, orientação sexual, regionalidade, classe sócio-econômica, local de moradia, como forma de aproximar-se o quanto possível dos sujeitos de direitos em sua concretude de vida. Mesmo centrado nos DESC, procura não perder o horizonte que tem a compreensão da universalidade, da interdependência e da indivisibilidade de todos os direitos humanos. Ademais, procura trazer a problemática nacional, sem esquecer-se de identificar as ênfases locais ou setoriais das situações.

Aspectos Gerais

6. O Brasil ratificou a maioria dos principais instrumentos globais e regionais de proteção dos direitos humanos. A Constituição Federal reconhece a vigência dos direitos humanos. Existem várias legislações que regulamentam sua implementação, mas ainda não em todos os temas e áreas. Em geral, ainda há um fosso imenso entre a previsão normativa e a ação executiva em políticas públicas que efetivem os direitos humanos em geral e os DESC em particular. Ademais, há um debate jurídico sobre a natureza dos tratados internacionais de diretos humanos, que ainda não tem efetivo reconhecimento com status constitucional, o que resulta num tratamento, em geral, pouco pró-ativo dos direitos humanos em termos judiciais. Pode-se dizer que, em grande medida, a maioria das decisões judiciais que são tomadas passam ao largo dos princípios dos direitos humanos: em geral os direitos humanos vêm depois de contratos de qualquer tipo. Este quadro aponta para uma situação na qual ainda há muito para ser feito a fim de consolidar a realização dos DESC.

7. Em suas Observações Conclusivas[1] o Comitê DESC/ONU foi enfático ao dizer que, entre os fatores e dificuldades que impedem a realização do PIDESC no Brasil estão as desigualdades e as conseqüências do impacto do ajuste estrutural.

8. Segundo o Comitê, “as desigualdades persistentes e extremas e a injustiça social que prevalece no Estado-parte afetaram negativamente a efetivação dos direitos garantidos pelo Pacto” (15). E continua: “a recessão econômica recente junto com determinados aspectos dos programas de ajuste estrutural e das políticas econômicas de liberalização tiveram efeitos negativos na garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos no Pacto, em especial para os grupos mais vulneráveis e os mais marginalizados” (16). A sensibilidade do Comitê aponta a principal ferida estrutural da sociedade brasileira. Agora, alguns anos depois das Observações, não há qualquer motivo para comemorar: mesmo com leve redução, a desigualdade persiste e os impactos do ajuste estrutural se consolidam.

9. A desigualdade é altíssima no Brasil, sendo um dos Países mais desiguais do mundo: os 10% mais ricos ficam com 46,9% da renda e os 10% mais pobres ficam com 0,7% da renda; e a renda apropriada pelo 1% dos mais ricos é equivalente à mesma renda dos 50% mais pobres[2]. De acordo com o Relatório da ONU de 2005, se o IDH fosse calculado com base na renda dos 20% mais pobres (mantendo-se as demais variáveis) e não no PIB per capita, o Brasil cairia 52 posições no ranking e passaria a ocupar a 115º posição. Um estudo recentemente publicado diz que: “Entre 2001 e 2004, o grau de desigualdade de renda no Brasil declinou de forma acentuada e contínua [o índice Gini caiu 4% no período]. Em 2004, ele foi o mais baixo dos últimos trinta anos. Essa queda contribuiu para reduzir substancialmente a pobreza e melhorar as condições de vida dos mais pobres mesmo em um período de estagnação da renda per capita. A despeito dessa importante diminuição, a desigualdade no País permanece extremamente elevada. Mesmo com o ritmo acelerado com que vem caindo, serão necessários mais vinte anos para que o País atinja uma desigualdade similar à média dos países com mesmo grau de desenvolvimento”. Note-se que a desigualdade sentida por negros, índios, ciganos, estrangeiros, mulheres, homossexuais (entre outros grupos vulnerabilizados socialmente) tem uma crueza ainda mais forte. O machismo e o sexismo marcam com força as relações sociais e se constituem em elementos arraigados na cultura. Marcam as relações familiares, as relações de produção, a religiosidade, enfim, os vários aspectos da vida pública e privada

10. A percepção da pobreza e da miséria é significativa. A reação social e governamental também cresce. Depois do advento do Mapa da Pobreza e da Miséria (1992), vários estudos têm mantido a identificação da situação. Programas públicos para seu enfrentamento vêm sendo implementados. O mais recente deles é o Fome Zero (agora reformulado e, incluindo vários programas, resultou no Bolsa Família), além da aprovação da legislação sobre Renda Básica. Com base na PNAD/IBGE, o IPEA informa que no período de 2001 a 2004, houve “um crescimento anual de 7,2% da renda per capita para os 10% mais pobres, apesar de a renda per capita brasileira ter declinado 0,9% ao ano no mesmo período. Se tomarmos a renda média dos 50% mais pobres, observaremos que essa cresceu 2,4% ao ano, ao passo que a renda média dos 50% mais ricos declinou 1,4% ao ano. Considerando o período como um todo, temos que, em razão da queda de 4% no coeficiente de Gini, o crescimento da renda dos 20% mais pobres foi 20% maior que a dos 20%”. Mais adiante diz que: “a queda da desigualdade entre 2001 e 2004 levou, por si só, a uma redução na proporção de pessoas extremamente pobres, no País, de mais de 3%, o que equivale a retirar cerca de 5 milhões de brasileiros da extrema pobreza”. Outro estudo do IPEA aponta que, de 2001 a 2005 houve uma queda de 4,5 na porcentagem de pessoas e famílias com renda per capita abaixo da linha de pobreza (de 38,6% em 2001 para 34,1% em 2005) e de 4,2 na porcentagem de pessoas e famílias com renda per capita abaixo da linha de extrema pobreza (de 17,4% em 2001 para 13,2% em 2005). As mudanças são significativas e, em grande medida podem ser creditadas às medidas de políticas de combate à pobreza. Mas, são ainda insuficientes pois apontam para um logo período a ser percorrido se o Pais quiser chegar a situações mais confortáveis.

11. O preço pago pelos brasileiros para controlar a inflação e liberalizar a economia é a sobreposição do fiscal ao social. Concretamente isto significa uma redução importante nos investimentos sociais e a busca da “responsabilidade fiscal” a todo custo. O governo brasileiro, ao destinar um percentual crescente do PIB para o pagamento da dívida, deixa de gastar em programas e ações governamentais essenciais para o bem-estar da população. A manutenção, praticamente inalterada, da política macroeconômica, especialmente de controle da inflação, gera uma transferência de renda para os mais ricos, particularmente para o sistema financeiro, o que ajuda significativamente na manutenção da desigualdade de renda. Segundo Pochmann, nos 20 anos de democracia brasileira calcula-se uma transferência acumulada de R$ 1,2 trilhão, através do pagamento de juros aos ricos que detêm a posse dos títulos públicos. O estudo mostra que, no período de Fernando Henrique (1998-2002), a transferência anual de fundo público para os ricos foi de R$ 71,4 bilhões; no período de José Sarney (1985-1989) o repasse anual foi R$ 65,5 bilhões; e nos dois primeiros anos do governo Lula (2003-2004) a transferência anual foi de R$ 60,8 bilhões. Nos mesmos 20 anos, o Brasil registrou uma expansão da produção de 2,6% ao ano, em média, enquanto o mundo cresceu a quase 4% anuais – uma diferença de 54%.

12. O Brasil ainda não universalizou os DESC. Apesar dos esforços de universalização do ensino fundamental, da ampliação do acesso ao ensino médio, técnico e superior, da cobertura da previdência e da ampliação da assistência social, da previsão de acesso público e universal à saúde, entre outros, a universalização do conjunto dos DESC ainda está muito distante. Segundo o Atlas da Exclusão Social, a dívida social histórica, até 2004, era de R$ 7,2 trilhões, ou seja, quase 10 vezes a atual dívida financeira pública. No governo Fernando Henrique, por exemplo, de 1995 a 2002, houve uma redução de 13,8% nos gastos sociais do setor público (o gasto com a dívida cresceu 13,4%).

13. Há um esforço na perspectiva de avançar na incorporação dos direitos humanos nas políticas públicas. Isto pode ser observado, sobretudo, a partir do Programa Nacional de Direitos Humanos e dos Programas estaduais e alguns municipais, além da formulação de diversos programas específicos (de educação em direitos humanos, por exemplo). Todavia, o assunto ainda é periférico se considerarmos o conjunto das políticas e mesmo em políticas específicas. A Secretaria Especial de Direitos Humanos, a partir de 2003, atingiu o patamar de ministério, o que lhe permitiria maior incidência na coordenação de ações e políticos dos diversos órgãos de governo em direitos humanos. Todavia, constituiu-se, na prática, num órgão que respondeu com relativa independência e agilidade às demandas emergenciais (situações de grave violação); avançou na formulação de algumas políticas estratégicas. Todavia, teve dificuldade de ampliar a interlocução interna no governo, o diálogo com a sociedade civil e de consolidar uma política ampla, integral e permanente de ação em direitos humanos. .

14. No governo Lula, a convivência com o Programa Nacional de Direitos Humanos tem sido polêmica. Ao mesmo tempo em que parece não reconhecê-lo como legítimo, visto que, segundo fontes do governo, já não responde às demandas no campo de direitos humanos, o mantém, não propõe sua revisão e, ademais, suprimiu programas (cerca de 30, em sua maioria no campo dos DhESC) quando da edição do Plano Plurianual 2004-2007. Mesmo tendo anunciado em vários momentos ensaios no sentido de uma revisão do Programa e de aparecer como uma das prioridades do candidato Lula para o segundo mandato, o governo ainda não produziu uma metodologia de avaliação do atual Programa e para sua atualização. A sociedade civil vem reiterando que entende que a iniciativa da revisão deve vir do governo e que está disponível para participar do processo de sua discussão e reconstrução. Entende também que, mais do que um esforço de um órgão do governo, a atualização do Programa deveria ser um esforço do conjunto do poder público com previsão de ampla participação da sociedade civil, a fim de consolidar os direitos humanos como política de estado, com ações e processos amplos e capazes de envolver os vários órgãos governamentais que têm incidência e responsabilidade no tema direitos humanos.

15. A participação e o controle social são mecanismos de ampliação e de aprofundamento da democracia. Têm base constitucional e vêm sendo efetivadas através de vários instrumentos, sobretudo os conselhos de políticas nas mais diversas esferas de governo. Neles participam representantes de organizações da sociedade civil e dos órgãos públicos. A participação nos Conselhos registra crescimento em institucionalização, mas também dificuldade de exercício efetivo do controle social, visto que, em sua maioria, fica refém das informações e das propostas vindas dos gestores públicos, o que dificulta a participação dos setores da sociedade civil. No que diz respeito aos Conselhos de Direitos Humanos pode-se dizer que o País está muito distante de incorporar as diretrizes internacionais, seja porque são muito poucos, seja porque os que existem, em geral, estão com grande inadequação às normativas internacionais, visto que, em sua maioria, estão dependentes da estrutura governamental. O Projeto de Lei que cria o novo Conselho Nacional de Direitos Humanos, que viria em substituição ao atual Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, está tramitando no Parlamento desde 1994. São cerca de 14 os Estados que têm Conselho de Direitos Humanos. Nos Municípios, a presença desses organismos é quase insignificante.

16. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 24 propostas de recomendações gerais para a realização dos DESC no Brasil

Direito à autodeterminação e ambiente sadio (art. 1º do PIDESC)

17. No Segundo Informe Oficial, o Estado brasileiro, faz uma interpretação parcial do direito à autodeterminação. Ocupa-se de informar sobre a autodeterminação de povos como os indígenas, quilombolas e ciganos, o que é louvável. Todavia, deixou de analisar aspectos chave do direito previsto no Pacto. A sociedade civil anota que a recomendação nº 43 do Comitê DESC/ONU vem sendo parcialmente atendida pelo Estado brasileiro. A recomendação toca numa das contradições estruturais das sociedades contemporâneas e exigiria uma reflexão de fundo da sociedade brasileira sobre o papel e as tarefas do Estado nacional em tempos de globalização econômica como a que estamos vivendo. A sociedade civil brasileira insiste na importância de o Comitê reiterar esta posição.

18. A autodeterminação dos povos tradicionais, sobretudo dos povos indígenas que vivem no País, sofre restrições por ainda serem considerados incapazes e tutelados pelo Estado, conforme determina a legislação. A Preocupação nº 35 do Comitê DESC/ONU no que diz respeito à falta de proteção suficiente aos povos indígenas é concreta e contundente. A sociedade civil brasileira reconhece a ação do governo federal na demarcação de áreas, mas a considera ainda insuficiente. Ademais, ainda é insuficiente também a promoção de medidas para a proteção das comunidades indígenas da ingerência de agentes econômicos e para o seu desenvolvimento próprio em áreas demarcadas. Assim, a sociedade civil brasileira alerta para o fato de que a Recomendação nº 58 do Comitê DESC/ONU não foi amplamente atendida pelo Estado brasileiro, restando necessária sua manutenção. Ademais, a expectativa da sociedade vai no sentido de que a política indigenista construa medidas sistemáticas e permanentes capazes de fazer frente às constantes violações dos direitos dos povos indígenas, superando a atuação socorrista. A política indigenista tem sido mantida nos últimos anos, o que significa dizer que ainda é insatisfatória. Mesmo com o incremento de processos de demarcação e legalização de áreas, aumento do orçamento para o órgão diretamente encarregado por ela (a FUNAI) e o desenvolvimento de vários programas de melhoria nas condições de alimentação, saúde, educação, cultura e outras, observa-se que ainda está longe de atender às demandas das comunidades indígenas. A realização, em abril de 2005, da I Conferência Nacional dos Povos Indígenas, da qual participaram cerca de 800 representantes de 230 etnias indígenas que aprovaram 169 propostas em diversas áreas e temas, traduziu as principais demandas dos povos indígenas.

19. Há um tímido avanço no reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, sobretudo a partir de sua organização e luta, que gerou medidas legislativas e administrativas no sentido do cumprimento do que determina a Constituição Federal. As medidas adotadas pelo governo brasileiro, e informadas no Segundo Informe Oficial, são bem-vindas. Carecem, todavia, de uma maior celeridade e amplitude e, especialmente, de maior proteção nos casos de ameaça decorrente de implementação de projetos industriais (caso da Base de Alcântara, no Maranhão, por exemplo) ou florestais (caso Aracruz, no Espírito Santo, por exemplo). A sociedade civil entende que a Recomendação nº 59 do Comitê DESC/ONU vem sendo atendida no tocante às medidas para demarcação, mas carece de medidas mais concretas para o caso de proteção nos termos do que determina o Comentário Geral do Comitê por ele referido. A construção de políticas para reconhecimento e regularização de áreas pertencentes a comunidades quilombolas é uma das prioridades da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), cuja criação foi saudada como um avanço pela sociedade civil brasileira. O Programa Brasil Quilombola (PBQ), lançado em 12/03/2004, incluído no Plano Plurianual 2004-2007, reúne um conjunto de ações, em várias áreas e envolvendo vários órgãos públicos federais. A construção deste programa é uma medida concreta para a atenção às várias demandas das populações quilombolas brasileiras, mesmo que ainda não seja universal, conte com recursos orçamentários aquém da necessidade e tenha sido registrada execução orçamentária de 34,4% do previsto para 2005, somando-se à grande burocracia que contrasta com a situação das comunidades e lhes dificulta a regularização. Na mesma direção, a sociedade civil brasileira saúda a realização da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, de 30/06 a 02/07 de 2005 que, entre outras, aprovou várias propostas que dizem respeito às comunidades remanescentes de quilombos.

20. A sociedade civil também saúda as medidas adotadas em relação ao povo cigano, todavia anota que ainda há um longo caminho para ser percorrido no sentido do respeito à sua cultura, à superação da discriminação e o acesso deste grupo às políticas públicas adequadas à sua forma de vida.

21. No atual governo, como nos anteriores, a questão ambiental não é efetivamente prioritária. Facilmente se instala um conflito com os grandes projetos de desenvolvimento, como, por exemplo, das hidroelétricas, em geral com graves sacrifícios ao meio ambiente.

22. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 14 propostas de recomendações para avançar na realização destes direitos.

23. A sociedade civil entende que o Informe Oficial apresentou as medidas que vem adotando para atender os grupos vulneráveis: negros e afro-descendentes, homossexuais, pessoas com deficiência, criança e adolescente, idosos, estrangeiros e ciganos. Não fez, no entanto, referência aos migrantes e pessoas privadas de liberdade (prisioneiros/as). Consideramos que a apresentação das informações sobre crianças e adolescentes ficaria melhor se alocada no artigo 10 do Pacto. Ademais, entendemos que as informações prestadas são incompletas no que tange à situação dos grupos, deixando de atender à Recomendação nº 44 no tocante a apresentar estatísticas comparativas e desagregadas. Seguramente não foi por falta de informação disponível, visto que os organismos públicos encarregados de produzir dados (IBGE e IPEA, especialmente) têm informações amplas e desagregadas, além de comparativas, sobre vários aspectos de cada segmento e entre eles, o que, aliás, é um avanço registrado nos últimos anos. No que diz respeito às ações e políticas públicas, também observamos que as informações são insuficientes e estão aquém, em alguns aspectos, daquelas disponibilizadas pelos órgãos públicos por elas encarregados em suas páginas eletrônicas ou em estudos e acompanhamentos feitos por órgãos como o IPEA. Neste sentido, o Estado deixa de informar com suficiência sobre o atendimento à primeira parte da Recomendação nº 44 que trata das medidas para enfrentar o racismo e a promoção da igualdade de oportunidades, entre outros aspectos. A sociedade civil entende que as medidas adotadas não são suficientes para atender ao que o Comitê expressou em sua Recomendação. A análise dos dados disponíveis para os grupos aqui relatados mostra que as piores situações se encontram nas regiões mais pobres do País, o que revela que há uma relação direta entre concentração de renda, desigualdade e garantia dos direitos. As regiões Sul e Sudeste tendem a apresentar melhores indicadores do que as demais regiões do País, onde as sobreposições de violações se destacam.

24. Afro-descendentes: A sociedade civil, diferente do Estado, que não apresentou informações estatísticas desagregadas, conforme determina a Recomendação nº 44 do Comitê na análise deste direito do Pacto, apresenta informações sobre a situação dos afro-descendentes que ilustram a desigualdade em diversos aspectos. Observe-se que as estatísticas dos órgãos oficiais produzem informações relevantes sobre este grupo e que estão disponíveis à sociedade. Com base nelas vêm sendo produzidos diversos estudos específicos. Para este ponto utiliza-se especialmente o estudo comparativo do período de 1995 a 2005, feito pelo IBGE (2006).

25. GLBT: A sociedade civil brasileira, através das organizações do movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), vem trazendo à agenda nacional a discriminação, a violência e a homofobia sofrida por este grupo. Todavia, ainda praticamente não existem informações oficiais específicas sobre orientação sexual. As informações disponíveis são produzidas por pesquisadores e por organizações da sociedade civil. Esta é uma manifestação de que o Estado não disponibiliza de uma base de informações que lhe permita cumprir a Recomendação nº 44 do Comitê, tendo deixado de apresentar estatísticas comparativas e desagregadas sobre este grupo.

26. Pessoas com Deficiência: Até o início da década de 1990 praticamente não existiam informações oficiais sobre pessoas com deficiência no Brasil. O IBGE inseriu o assunto no Censo de 1991, pela primeira vez e melhorou a forma de coleta no Censo de 2000. Isto mostra que a atenção mais específica a este segmento populacional é bastante recente. Atualmente, os dados disponíveis são os do Censo de 2000, o que indica que o assunto ainda não é amplamente tratado em outras formas de produção de informações pelos organismos oficiais. Considerando este quadro, pode-se dizer que as ações para o segmento carecem de uma base de estudo mais consistente e atualizada. Diante disso, a sociedade civil brasileira entende que o País ainda não atendeu satisfatoriamente as Recomendações nº 44 e 46 do Comitê, tendo deixado de apresentar estatísticas comparativas e desagregadas sobre este grupo em seu Informe Oficial.

27. Idosos: As informações disponíveis sobre idosos são significativas. Por isso, a sociedade civil não entende os motivos pelos quais o Estado não cumpriu as determinações da Recomendação nº 44 do Comitê, tendo deixado de apresentar estatísticas comparativas e desagregadas sobre este grupo.

28. Migrantes, Estrangeiros e Refugiados: São muito poucos os estudos e estatísticas oficiais sobre mobilidade humana no Brasil, o que dificulta a análise da situação e o atendimento aos direitos deste segmento populacional. Isto não justifica que o Estado tenha deixado de atender ao solicitado pelo Comitê na Recomendação nº 44. Em linhas gerais, como informa o Ministério da Justiça, o Brasil, historicamente, recebe imigrantes, tendo, nos últimos dois séculos, recebido perto de cinco milhões de pessoas de várias nacionalidades, especialmente européias e orientais. Atualmente, o total de imigrantes regulares no Brasil chega a 836 mil, o menor número nos últimos 25 anos. Já em situação irregular, calcula-se que haja entre 150 e 200 mil pessoas. Só em São Paulo estima-se a presença de 60 mil bolivianos residindo irregularmente, além de 10 mil em Mato Grosso. Por outro lado, a quantidade de brasileiros no exterior tem sido crescente. Estima-se que mais de quatro milhões de brasileiros residam fora do território nacional, sendo 1,2 milhão só nos Estados Unidos.

29. Pessoas Privadas de Liberdade: A sociedade civil brasileira lamenta que o Estado não tenha informado o Comitê sobre este tema que permite uma abordagem significativa de um dos segmentos sociais mais abandonados. Considerando que a imprecisão dos dados sobre pessoas em situação de privação de liberdade é significativa, visto que praticamente somente nos dois últimos anos há informações mais detalhadas, sobretudo depois da implementação do Sistema Integrado de Informações penitenciárias pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça, este Informe apresenta alguns dados dando ênfase à população carcerária adulta (a situação dos adolescentes em conflito com a lei será apresentada no Capítulo 6). Observe-se que os dados divulgados apresentam discrepâncias significativas, sobretudo visto que são informados pelos estabelecimentos prisionais e pelas Secretarias Estaduais. Uma mostra disso é que, em novembro de 2006, havia uma população carcerária de 385.317 presos no total. Todavia, quando analisados os dados desagregados aparecem totais específicos para cada quesito, numa média de pouco mais de 70% do universo da população carcerária. Esta situação mostra que há um avanço com a implantação do sistema, que permitirá uma análise mais precisa da situação carcerária, por um lado, atendendo em parte as Recomendações nº 44 e 60 do Comitê, por outro, a necessidade de qualificação do sistema.

30. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 24 propostas de recomendações para avançar na realização dos DESC dos grupos sociais considerados.

Mulheres e DESC (art. 3º do PIDESC)

31. São várias as questões apontadas pelo Comitê DESC/ONU, em suas Observações Conclusivas, no que diz respeito à garantia dos DESC das Mulheres. Considerando que praticamente não são apresentadas informações detalhadas pelo Estado brasileiro no Segundo Informe Oficial, apresentaremos a análise sobre a situação geral dos direitos das mulheres seguindo as Recomendações do Comitê.

32. A avaliação sobre o cumprimento do PIDESC requer um balanço das políticas públicas e das realizações estatais. Em vista disso, toda a reflexão acerca da igualdade de gênero, raça e etnia, regional, etc. deve diferenciar a finalidade e os objetivos alcançados pelas estratégias e processos utilizados, nos quais as competências são prioritariamente estatais, quer dizer, de cada Estado Parte do Pacto. Com isso não se pretende desconhecer a responsabilidade dos diferentes setores da sociedade civil comprometidos com a igualdade, mas tão somente reafirmar a primazia da responsabilidade do Estado no que se refere à realização de políticas públicas e à garantia de direitos. A dimensão da igualdade deve ser considerada quando se avalia o conjunto das políticas e das ações nas fases de planejamento, implantação, controle e avaliação. Ainda mais quando se considera a iniqüidade e a diversidade de situações que envolvem o cotidiano das mulheres brasileiras.

33. No que diz respeito à igualdade entre mulheres e homens, ainda há muito por fazer para atender às Recomendações n° 44 e 45 do Comitê, conforme ilustram os dados a seguir apresentados. O Brasil serviu de manchete para revistas e jornais do País e do mundo ao ser identificado entre os países com maior desigualdade entre homens e mulheres. A notícia se refere ao relatório divulgado pelo Fórum Econômico Mundial (2005), que avaliou 58 países para medir o empoderamento das mulheres. O Brasil figurou em 51º lugar no ranking, numa escala de medida de 1 a 7 (1 para maior desigualdade e 7 para menor) recebeu 3,29 pontos. As brasileiras receberam melhor avaliação no plano das oportunidades econômicas, posicionadas em 21º lugar. Também ficaram na primeira metade do ranking no que diz respeito à educação (27º), porém mal colocadas em participação econômica (46º), saúde e bem-estar (53º). Em participação política ocuparam o penúltimo lugar (57°). No ranking geral, o Brasil perde para todos os seus vizinhos e, entre os latino-americanos, fica na frente apenas do México.

34. As desigualdades de gênero se materializam em várias dimensões da vida das mulheres brasileiras e expressam, numa certa ordem: menor disponibilidade de educação e emprego; níveis inadequados de saúde e bem estar; participação reduzida nos processos de decisão; e escassa integração aos sistemas políticos.

35. A criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), vinculadas à Presidência da República, constitui-se num importante avanço para o reconhecimento da necessidade de produção de políticas públicas específicas e para coordenar e incentivar ações dos demais órgãos governamentais com vistas à transversalidade de gênero e etnia/raça nas políticas públicas. Uma das principais ações da SPM foi a convocação, em julho de 2004, da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que resultou na construção do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Neste sentido, são bem-vindas as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial sobre as políticas para promoção dos direitos das mulheres. Todavia, é de ressaltar que, considerando os dados apontados neste Contra-Informe sobre a situação das mulheres, em especial daquelas em situação de maior vulnerabilidade, a sociedade civil considera que ainda há muito a ser feito em matéria de políticas públicas, mudanças legislativas e mudanças na cultura e no comportamento para atender às Recomendações do Comitê e efetivar os DESC das mulheres brasileiras, em especial as de n° 12, 23, 44, 45, 52, 53, 54 e 62.

36. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 24 propostas de recomendações para avançar na realização dos DESC das mulheres brasileiras.

Direito ao Trabalho, Descanso e Lazer e Direito à Greve, Organização Social e Sindical (art. 6º, 7º e 8º do PIDESC)

37 . A sociedade civil brasileira entende que a garantia do direito ao trabalho é um dos principais desafios contemporâneos, seja como forma de integração social, seja como medida econômica para viabilização de condições de reprodução da vida pela população. Todavia, como preconiza o PIDESC, mais do que trabalho, é necessário que haja condições de trabalho que garantam aos trabalhadores remuneração adequada, equidade na remuneração e nas oportunidades de promoção, segurança e higiene no trabalho, profissionalização e formação técnico-profissional, em suma sejam viabilizadas as condições para que o direito seja a um trabalho decente. Além disso, é fundamental garantir o direito ao descanso e ao lazer não somente como direitos complementares ao trabalho, mas como exigências fundamentais para a realização mais plena das pessoas. A visão social do PIDESC comunga com os ideais do Estado de bem estar social, visto que advoga a tese do pleno emprego, exigência difícil de ser efetivada nos últimos tempos, especialmente em virtude da onda neoliberal que tem pautado as políticas públicas em boa parte do mundo.

38. Sem medo do exagero ou de uma afirmação irreal, pode-se dizer que o Brasil, mesmo que tenha uma legislação que regula as relações de trabalho há mais de 60 anos, protegendo minimamente o trabalhador, ainda não o faz de forma suficiente e não realizou plenamente este direito, sobretudo se considerarmos que nunca adotou uma política de pleno emprego e a implementação de condições adequadas de trabalho, o que manifesta a contradição estrutural de uma sociedade que optou por ser capitalista, mesmo que periférica e subserviente. O trabalho continua sendo mais uma possibilidade a partir das condições do mercado do que uma garantia de direito. Mesmo que, como dissemos, haja uma legislação que tem amplo espectro protetivo a favor do trabalhador.

39. Quatro características centrais podem ser apresentadas como elementos chaves da situação do trabalho no Brasil: a) a dificuldade de acesso à inserção no trabalho formal, sobretudo para jovens, negros, mulheres, pessoas com deficiência e pessoas com mais de 40 anos; b) a grande informalidade e baixa remuneração, que deixa milhões à margem da proteção dos direitos e com dificuldade de auferir o suficiente para reproduzir a vida; c) a existência de formas de trabalho desumano e degradante como o trabalho escravo e o trabalho infantil – pode-se considerar que, nos últimos anos, tem havido aumento do emprego com carteira, da contribuição previdenciária e do rendimento médio, além de sensível queda na desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho; d) a precarização e a flexibilização das relações de trabalho, que põem uma parcela significativa da população no mercado informal e atinge direitos trabalhistas já adquiridos.

40. O volume de estatísticas e estudos é significativo neste campo, inclusive com abordagens desagregadas sobre vários aspectos e segmentos sociais. Diante do quadro, far-se-á opções no sentido de apresentar aspectos centrais que possam indicar a situação geral da garantia do direito ao trabalho, buscando informações junto aos órgãos oficiais. Entendemos que, dessa forma, a sociedade civil poderá subsidiar o Comitê, especialmente levando em conta suas Preocupações (de modo particular as nº 17, 22, 23, 24 e 25) e Recomendações (de modo particular as nº 45, 47, 48 e 49). A sociedade civil entende que o Informe Oficial, ao fazer a análise da situação dos direitos previstos nos artigos 6º, 7º e 8º do PIDESC, não apresentou informações suficientes sobre a situação dos direitos, inclusive creditando praticamente ao crescimento econômico as mudanças no perfil do trabalho, que, como veremos são ainda insuficientes para garantir o acesso amplo ao direito, além de não ter prestado informações de modo particular no que diz respeito à Preocupação nº 25 e à Recomendação nº 49 do Comitê. Dedicou-se mais a informar sobre as ações promovidas, mesmo que, em geral, em caráter mais informativo que analítico.

41. O trabalho escravo existe, está invisível e dificilmente é combatido, mesmo considerando todos os esforços já empreendidos na última década. Daí que, a Preocupação nº 23 do Comitê é forte e é também preocupação da sociedade civil brasileira. Alguns dados ilustram a situação. Para o Observatório Social (2004, p. 4-5), o número de trabalhadores escravizados no Brasil varia de 25 mil, segundo cálculo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a 40 mil, pela estimativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Pecuária e desmatamento respondem por três quartos da incidência de trabalho escravo. Atividades agrícolas, de extração de madeira e produção de carvão também registram muitos casos. As estatísticas da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho registram que, de 1995 a 2003, foram fiscalizadas 1.011 fazendas e libertados 10.726 trabalhadores – incluindo-se o primeiro semestre de 2004, o número de trabalhadores libertados é de cerca de 16 mil. O Estado com maior número de libertados é o Pará, seguido de Mato Grosso, Bahia e Maranhão. A sociedade civil brasileira reconhece a iniciativa de várias instituições públicas, da Justiça, de organismos internacionais e organizações empresariais no sentido de promover ações de combate ao trabalho escravo. Todavia, pelos dados apresentados, fica claro que ainda estão muito longe de ser suficientes, mesmo sendo adequadas, para o enfrentamento da situação. Por isso, o Estado ainda não atende à Recomendação n° 47 do Comitê.

42. O movimento social brasileiro é forte, diversificado, complexo, tem significativa capacidade de mobilização, está ampliando sua capacidade de monitoramento e de controle social das políticas públicas, além de enfrentar com coragem o modelo concentrador e excludente de desenvolvimento. Não seria exagero afirmar que, em boa medida, as conquistas sociais configuradas constitucionalmente e nas diversas legislações específicas dos últimos anos, todas ainda insuficientes, são fruto da mobilização e da pressão social. Seguramente, a democracia brasileira é incompreensível sem ter em conta, no seu núcleo, a presença da organização popular. O Relatório sobre a situação dos/as defensores/as de direitos humanos no Brasil (2002-2005), feito pelas ONGs Justiça Global e Terra de Direitos (2006, p. 35), traz 51 casos emblemáticos de violações cometidas contra defensores/as de direitos humanos nos Estados do Amazonas, Pará, Pernambuco, Espírito Santo, Bahia, Goiás, Rio Grande do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Paraná, Sergipe, São Paulo, Minas Gerais, Piauí, Mato Grosso, Santa Catarina e Rio Grande do Norte. A Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH, 2005), depois de missão realizada no Estado do Pará, em seu relatório apresenta uma lista com 62 defensores/as ameaçados somente no Estado do Pará. Os casos dão um panorama nacional, concreto, dos tipos de obstáculos e ataques a que estão sujeitos homens e mulheres que coletiva ou individualmente lutam pela promoção, proteção e efetivação de direitos no Brasil

43. A sociedade civil reconhece os esforços do Estado na promoção de políticas públicas para atendimento do direito ao trabalho, sobretudo expressos em vários programas de proteção dos trabalhadores. O Informe Oficial é extensivo na apresentação descritiva das iniciativas, mesmo que não apresente de forma crítica os resultados por elas obtidos. Todavia, entende que, com base nos dados anteriormente apresentados, as atuais medidas são ainda insuficientes para garantir o que determina o PIDESC e para atender às Recomendações do Comitê, de modo particular as de nº 45 e 48.

44. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 20 propostas de recomendações para avançar na realização dos direitos dos trabalhadores/as e à livre organização.

Direito à Seguridade Social (Previdência e Assistência Social) (art. 9º do PIDESC)

45. O Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, conta com um sistema de Seguridade Social que articula Previdência, Assistência Social e Saúde, sendo que a primeira tem cobertura mediante contribuição; a segunda definida como direito, sem contribuição, porém focalizada para grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade; e a terceira como direito universal da cidadania e dever do Estado. Vale ressaltar que a Constituição Federal aprovou a Previdência com uma política de caráter redistributivo. A passagem para uma política contributiva se deu no governo Fernando Henrique Cardoso com a reforma da previdência. Esta mudança teve como objetivo desmontar outra conquista da Constituição de 1988 que é o Orçamento da Seguridade Social. Considerando o PIDESC, daremos atenção às duas primeiras, deixando a saúde para abordar no artigo específico.

46. A política púbica de previdência social é fundamental para o combate às desigualdades, pois é a maior fonte de redistribuição de renda do País. Apesar disso, vem sendo objeto de ataques e de mudanças constitucionais nas últimas décadas, especialmente em virtude do suposto déficit previdenciário. Vários estudos apontam a não existência do tal déficit se todos os recursos previstos legalmente para a Seguridade Social estivessem sendo aplicados nela. Os grupos que defendem a necessidade da reforma da previdência em função do suposto déficit apresentam como propostas: a) limite mínimo de idade para se aposentar (65 anos para homens e 63 para as mulheres); b) desvincular dos benefícios previdenciários e assistenciais do salário mínimo; c) fim das aposentadorias especiais (professores, mineiros, etc); d) fim da aposentadoria por tempo de contribuição; e e) criação de uma previdência social pública mínima (até três salários mínimos) e o restante passar para a previdência complementar privada. A sociedade civil brasileira entende que propostas deste tipo não são bem vindas, seja porque são restritivas aos direitos conquistados, seja porque não preparam o sistema para atender ao crescimento da expectativa de vida da população. Ademais, defende que qualquer reforma da previdência deverá vir para resgatar o conceito de seguridade social da Constituição Federal de 1988 e que tenha como eixo principal a necessidade de incluir os milhões de brasileiros/as que estão fora do sistema de previdência e que estão no mercado informal. Outro aspecto é que os que defendem a reforma da previdência não atacam a questão da sonegação das contribuições, nem as altas aposentadorias e muito menos o sistema de transferência de renda dos mais pobres aos mais ricos pelos altos juros. Para se ter uma idéia o conjunto dos benefícios da seguridade social (previdência e assistência) consomem 6,5 % do PIB sendo que os juros consomem 8,8 % do PIB. No final do ano de 2006 o próprio Ministério da Previdência Social reconheceu que o Tesouro Nacional estava calculando erradamente o chamado déficit, pois inclui neste item os benefícios assistências (que tem outras fontes de financiamento) e as isenções tributarias. Com isso, o suposto déficit, nos cálculos do Ministério, caiu de R$ 42 bilhões para R$ 3,8 bilhões, mais de dez vezes menor.

47. No que diz respeito ao direito à previdência social, preocupação apontada na Recomendação nº 50 do Comitê, o que se tem observado é uma pressão forte dos setores interessados na privatização da previdência e reformas realizadas em geral na perspectiva da restrição da cobertura de direitos. As iniciativas contrastam com um dos maiores problemas já identificados quando analisamos a situação do trabalho que é o amplo contingente de trabalhadores na informalidade (52,8% em 2005), via de regra os que têm pior remuneração e, em conseqüência, vivem em situação de maior vulnerabilidade social, sendo, portanto, desprotegidos em termos previdenciários. Este se constitui num dos maiores desafios à previdência social. No Informe Oficial, o Estado brasileiro não apontou este como sendo um dos maiores desafios no tema, mesmo tendo informado, como é verdade, o aumento da proteção social, porém, ainda insuficiente (Cf. DELGADO; QUIRINO, 2005).

48. O Contra Informe da sociedade civil apresenta seis propostas de recomendações para avançar na realização do direito à seguridade social.

Direito à Proteção da Família, da Maternidade, das Crianças e Adolescentes e dos Jovens (art. 10 do PIDESC)

49. A sociedade civil brasileira entende que o artigo 10 do PIDESC prevê a proteção dos DESC de crianças, adolescentes e jovens, da família e da maternidade. Por isso, dedica-se a apresentar informações sobre estes temas, considerando que o Comitê manifestou sua preocupação com a situação e as ações voltadas para crianças, adolescentes e jovens, bem como a incidência de violência contra estes segmentos, pediu também que o Estado informasse com detalhes, a situação da mortalidade materna e do aborto no País. Para tal cada item será sub-dividido por família, maternidade, infância, adolescência e juventude. Em termos gerais, a sociedade civil nota que o Informe Oficial, mesmo tendo tratado das questões relativas à infância, adolescência e juventude no artigo 2o e tendo dedicado a análise no artigo 10 à família, com grande ênfase ao Programa Bolsa Família, as informações prestadas são amplas, mas ainda insuficientes para demonstrar os vários aspectos, de forma detalhada e comparativa, especialmente se considerarmos os diversos segmentos abrangidos neste artigo.

50. A rigor, não existem políticas públicas para a família, stricto senso, o que existem são vários programas e ações que têm foco na família, sobretudo as que se encontram em maior vulnerabilidade e risco social em vista de garantia de acesso à assistência social (Programa de Atenção Integral à Família – Paif, por exemplo) e transferência de renda (Bolsa Família, por exemplo). Como estes foram objeto de análise em outros Capítulos (5 e 7, respectivamente), remetemos a atenção para lá.

 
51. A maternidade deveria ser uma das prioridades das políticas públicas, sobretudo, de saúde e de assistência social. Neste sentido, a principal ação de proteção à maternidade no Brasil é feita através da licença maternidade (de 120 dias) – a licença paternidade é de cinco dias – para a mulher trabalhadora (artigo 7º da Constituição Federal). Ademais, a mãe que amamenta tem deito a dois descansos especiais remunerados de meia hora cada um, durante a jornada de trabalho, podendo até ser dilatado em razão da necessidade e saúde do filho, até que complete seis meses de idade (a proteção ao aleitamento constitui direito assegurado no artigo 9º do Estatuto da Criança e do Adolescente).  
 

52. A sociedade civil brasileira reconhece que as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial sobre a situação da infância, da adolescência e da juventude no que diz respeito à garantia dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais desses segmentos sociais são condizentes com as medidas adotadas. Todavia, observa que são demasiado descritivas e sem indicativos sobre sua adequação e suficiência para fazer frente à gravidade de vários problemas enfrentados por estes grupos sociais..

53. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 13 propostas de recomendações para avançar na realização dos direitos dos segmentos sociais em tela.

Direito a Viver com Dignidade (Alimentação e Moradia) (art. 11 do PIDESC)

54. A sociedade civil brasileira anota com atenção as informações apresentadas pelo Estado brasileiro em seu Informe Oficial no que diz respeito a este artigo do PIDESC. Mesmo considerando que haveria muitos aspectos, vários dos quais já tratados em outros capítulos, no que diz respeito ao direito humano a viver com dignidade, concentra sua atenção a dois aspectos centrais: alimentação, água e terra rural; e moradia adequada.

55. A compreensão da situação do direito humano à alimentação e à terra rural no Brasil exige levar em conta vários aspectos, muitos deles já tratados na parte geral deste Contra Informe, como a desigualdade e a pobreza, a situação de grupos sociais vulneráveis, as agressões aos biomas e ao patrimônio hídrico nacionais pelas empresas do agronegócio, mineradoras e siderúrgicas. Trata-se de um modelo de desenvolvimento que privilegia os monocultivos e o latifúndio e reserva para a agricultura camponesa políticas compensatórias. A concentração de terras e a freqüente inviabilidade econômica da agricultura camponesa danificam o direito à reprodução da vida a partir da terra. Ademais, as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial no que diz respeito à situação do direito novamente são parcas, visto que deu mais atenção ao relato das ações que vem desenvolvendo no tema. Optamos metodologicamente por dar atenção especial a alguns aspectos fundamentais que foram objeto de preocupação do Comitê (especialmente no 25 e 31) e das Recomendações no 55 e 61, com vistas a completar e sistematizar alguns aspectos centrais, especialmente sobre a situação agrária, visto que sobre a pobreza já fizemos no capítulo que trata das questões gerais. A sociedade civil brasileira entende que o Estado brasileiro vem desenvolvendo algumas ações no intuito de combater a miséria, todavia, no que diz respeito ao acesso à terra ainda há entraves significativos. Reconhece que as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial são amplas, mas descritivas, visto que não apresentam os impactos e menos ainda os desafios em cada um dos temas. Considerando a complexidade e amplitude das políticas e ações neste tema, concentraremos a análise em dois aspectos: o Programa Bolsa Família e as ações de reforma agrária. O objetivo é demonstrar que ainda há muito a caminhar para atender às Recomendações do Comitê e, em conseqüência, realizar o direito humano à alimentação e à terra rural.

56. A garantia do direito humano à moradia adequada é uma questão crucial e que se insere, na compreensão da sociedade civil brasileira, na garantia do direito à cidade, visto que a imensa maioria da população está nos centros urbanos. Tomaremos em conta, de modo particular, as Preocupações (de no 33 e 34) e as Recomendações (de no 56 e 57) do Comitê sobre o tema. A sociedade civil brasileira entende que houve uma reestruturação institucional das políticas públicas neste campo, inclusive com a adoção de conceitos mais amplos como o de direito à cidade. Foram realizadas duas Conferências Nacionais das Cidades (a primeira em outubro de 2003 e a segunda em dezembro de 2005), com ampla participação de diversos segmentos da sociedade para definir os princípios e as diretrizes destas políticas e a implantação do Conselho Nacional das Cidades (em abril de 2004) que tem o papel de acompanhar e avaliar a execução da política urbana nacional, bem como a habitacional. Em que pese a definição de diretrizes para a definição do Sistema Nacional das Cidades, não ocorreu a sua efetivação nas três instâncias federativas. Somam-se a essas ações aquelas relacionadas ao desenvolvimento urbano, como é o caso da Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo (PDP) (IPEA, 2006).

57. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 10 propostas de recomendações para avançar na realização do direito a viver com dignidade, especialmente no que diz respeito ao direito à alimentação e à moradia.

Direito à Proteção Saúde (art. 12 do PIDESC)

58. As preocupações do Comitê da ONU são também preocupações da sociedade civil, especialmente no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde, a mortalidade materna, as condições de vida dos prisioneiros e o aumento do HIV/AIDS entre mulheres e jovens (ver nos 17, 27, 37 e 38). Também toma em conta as Recomendações a este respeito (no 51 e 62). Entende que as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial no que diz respeito ao direito humano à saúde são consistentes e relevantes, mesmo que possam ser qualificadas e completadas, sobretudo nos aspectos específicos. Neste sentido, este Informe dedica-se a apresentar alguns dados que podem ilustrar a situação do direito humano à saúde.

59. O Brasil tem um dos sistemas de atenção à saúde mais amplo e complexo do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS). Foi construído por lutas sociais significativas ao longo de décadas e incorporado à Constituição Federal de 1988, prevendo explicitamente a saúde como direito da cidadania e dever do Estado. Todavia, salvos os esforços importantes que vem sendo realizados, ainda há problemas de acesso, resistência do setor privado e de profissionais da saúde, sobretudo médicos, tensionando permanentemente o sistema público, o que dificulta o acesso por parte de amplos contingentes, incluindo-se os grupos em situação de maior vulnerabilidade social.

60. Em termos gerais, pode-se dizer que houve melhoria em vários indicadores de saúde do País. Todavia, ainda persistem situações que demonstram quanto ainda está-se distante de atender plenamente o PIDESC na garantia da realização do direito humano à saúde. A sociedade civil brasileira reconhece que as informações prestadas pelo Estado no Informe Oficial são relevantes e amplas, sobretudo indicando as várias iniciativas empreendidas. Todavia, anota que não apresenta uma análise mais profunda e, sobretudo, dados sobre o impacto das medidas implementadas, salvo exceções. Não será possível fazer a apresentação de cada um dos programas indicados pelo Estado. Por isso, opta-se pela análise de alguns aspectos que são estruturais, conforme segue, de tal sorte a mostrar que, mesmo com um dos mais importantes sistemas de atenção à saúde do mundo, o Brasil ainda está longe de ver suas políticas públicas atenderem de forma suficiente e adequada ao que determina o PIDESC no que diz respeito ao direito humano à saúde.

61. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 16 propostas de recomendações para avançar na realização do direito à saúde.

Direito à Educação (art. 13 e 14 do PIDESC)

61. A sociedade civil brasileira comunga da Preocupação nº 39 do Comitê sobre o analfabetismo no País e que se converteu na Recomendação nº 63. Também concorda com a necessidade de ampliar a formação em direitos humanos (Recomendação nº 42). Reconhece os esforços do Estado brasileiro para garantir o direito humano à educação. Todavia entende que ainda há muito a ser feito para garantir o acesso e permanência na escola, especialmente para grupos sociais vulneráveis, e para melhorar a qualidade do ensino, garantindo o direito humano a aprender. Entende também que as informações prestadas pelo Estado em seu Informe Oficial são amplas e consistentes. Todavia, propõe-se a aprofundar alguns aspectos que considera fundamentais para compreender a situação geral da educação no País, tomando em conta os dados oficiais.

62. A sociedade civil brasileira entende que as políticas públicas para atendimento do direito humano à educação vêm tendo impacto significativo no que diz respeito ao acesso aos níveis fundamental e médio, já que houve aumento de matrículas nestas etapas (exceto de 2005 para 2006, como já apontamos, para o caso da educação básica). O mesmo não pode ser dito em relação à educação infantil (creche e pré-escola) e à educação inclusiva, cujo desenvolvimento tem ocorrido em nível insatisfatório, considerada a demanda, que se concentra, sobretudo, na população pobre. Considerando-se a média de anos de estudo e outros aspectos, pode-se dizer que ainda são altos os índices de evasão e de repetência. No que diz respeito à qualidade do ensino, como já informamos acima, pode-se dizer que ainda há muito por fazer, sobretudo na educação básica, visto que houve permanente queda da qualidade da aprendizagem tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, o que significa dizer que, mesmo na escola, ainda amplos contingentes não aprendem de forma adequada e dentro do esperado para o nível de escolaridade que concluíram. Merecem destaque iniciativas que visam a promoção da educação para segmentos sociais mais vulneráveis, manifestas, de um lado, pela criação de uma Secretaria da Diversidade no âmbito do Ministério da Educação e, de outro, pelas novas normatizações que obrigam a abordagem de temas como História da África e cultura afro-brasileira. Nesta direção também é destaque a política de ampliação do acesso ao ensino superior. Note-se, todavia, que as políticas para enfrentar o analfabetismo, mesmo tendo havido redução neste indicador nos últimos anos, ainda são insuficientes para fazer frente à grande massa de pessoas que não têm acesso ao letramento mínimo e, especialmente, as que continuam praticamente analfabetas (analfabetismo funcional) mesmo tendo freqüentado alguns anos de escola. No que diz respeito à organização da administração educacional, a sociedade observa que a troca de dirigentes do Ministério da Educação (foram 3 ministros diferentes entre 2003 e 2006), dentro de um mesmo governo, gera instabilidade e significativas mudanças na orientação das políticas (por exemplo, primeiro ano, atenção maior para alfabetização, depois para inclusão no ensino superior e depois educação básica).

63. A sociedade civil também destaca a elaboração e divulgação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (dezembro de 2006), depois de amplo processo de discussão nacional, desde o ano de 2003, coordenado pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, com participação de especialistas, organizações sociais e representação do Ministério da Educação e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, acompanhado da implementação de algumas ações pontuais. O Plano prevê ações para a educação formal (básica e superior), para a educação não-formal, a educação dos profissionais do sistema de justiça e segurança e da/na mídia. Com isso, atende-se em parte a Recomendação no 42 do Comitê. Todavia ainda não abrange o núcleo da Recomendação, visto que deveria atingir o conjunto dos agentes públicos que têm atuação direta na execução de políticas públicas em vista da realização dos direitos humanos. A sociedade civil entende que há mais sensibilidade sobre o tema em vários órgãos públicos do Poder Executivo e em setores do Judiciário e do Ministério Público, todavia, a resistência ainda é proporcionalmente maior, estando ainda forte o desafio de implementação de um amplo programa de capacitação dos agentes públicos, sobretudo, os que têm responsabilidade de direção em vista de avançar no compromisso com os direitos humanos. Ademais, como em outros casos, o Plano não veio acompanhado de previsão orçamentária suficiente sequer para executar as ações a curtíssimo prazo. É necessário instar o Estado a concretizar o referido Plano, sobretudo através do controle social das concessões públicas dos veículos de comunicação.

64. O Contra Informe da sociedade civil apresenta 11 propostas de recomendações para avançar na realização do direito à educação

Direito à Cultura (art. 15 do PIDESC)

65. O direito à cultura e ao desenvolvimento científico e tecnológico compreende um conjunto de aspectos que constituem base da vida das populações, podendo, sobretudo o direito à cultura, ser compreendido como condição para o exercício de outros direitos, assim como um direito a ser protegido. O direito ao desenvolvimento científico e tecnológico implica nas condições para o desenvolvimento e disseminação da ciência e dos bens por ela produzidos, questão decisiva em sociedades modernas.

66. A cultura pode ser entendida como forma de vida e, neste sentido, é componente que se abre ou não, inclusive, à compreensão e à prática dos direitos humanos, de tal sorte que se pode falar em “cultura de direitos humanos”. Como direito, requer a construção de uma postura e de uma compreensão que façam frente aos monismos e se abra à percepção da complexidade e da multiplicidade de formas e de expressões. Neste sentido, a cultura é multidimensional e se traduz, além dos aspectos sociológicos e antropológicos – reconhecidos pelo Estado em seu Informe Oficial –, em dimensões sociais, econômicas, artísticas e outras. O direito à cultura é muito mais do que o acesso a bens e práticas culturais. Antes, é a possibilidade de produção e disseminação, livre e criativa, tanto de bens quanto de práticas culturais. Mas, é também incentivo à expressão autônoma da cultura e da arte, a preservação da memória e do patrimônio material e espiritual, a maneira de relacionamento com as diferentes culturas, o acesso aos meios de produção e de difusão da cultura e, acima de tudo, a possibilidade de ser e de fazer de modo próprio. Todos estes elementos, todavia, contrastam com a hegemonia da indústria cultural, que pervade as relações e as instituições e monopoliza a criatividade, tornando a massificação um fenômeno forte e presente.

67. A diversidade cultural é uma marca da sociedade brasileira. Da mesma forma, é também marca histórica a dificuldade do País tratar a cultura como direito – mesmo que esteja assim previsto no artigo 215 da Constituição Federal –, visto que, em geral, é mais entendida como atividade de mercado. Compreender as condições do direito à cultura no Brasil implica tomar em conta vários aspectos que compõem o conjunto das condições de vida e de acesso a vários outros direitos, como educação, trabalho e remuneração justa, entre outros aspectos. A diversidade cultural é composta por diversas etnias indígenas, africanas, européias, asiáticas e de outras regiões do mundo. A diversidade indígena é a que mais sofreu com a dizimação, visto que restam, segundo a FUNAI, 215 sociedades indígenas e mais 55 grupos isolados, falando 180 línguas, pelo menos, são faladas pelos membros às quais pertencem a mais de 30 famílias lingüísticas diferentes – estima-se que eram cerca de 1.300 línguas indígenas diferentes quando da invasão portuguesa em 1500. A diversidade africana foi subjugada e mitigada de várias formas pelo processo de tráfico e de escravidão. A diversidade, para as demais etnias, é resultante do fato de o Brasil ter recebido amplos contingentes de imigração, especialmente do final do século XIX em diante. Outra característica da diversidade é a presença de várias matrizes religiosas. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, o Censo IBGE 2000 mostrou que, dos cerca de 140 grupos diversos, os brasileiros se declaram em 73,89% como católicos, 16,22% evangélicos, 7,35% sem religião, 1,99% outras e 1,35% espiritualistas (FGV.CPS). A diversidade também se expressa na riqueza de manifestações culturais e artísticas típicas de cada lugar e/ou região do País, seja através das diversas artes, do folclore e de outras tradições culturais. A diversidade lingüística está praticamente extinta no País. A influência indígena e africana ser restringe a vocábulos e expressões que foram incorporadas à língua portuguesa falada no Brasil. Não há uma política de preservação e disseminação, salvo estudos e projetos esparsos e localizados no caso de um ou outro idioma tradicional. O processo forte de massificação cultural em vários sentidos, sobretudo resultante da incidência forte dos meios de comunicação social (entre os quais a TV, que exerce um papel de padronização inigualável), faz com que o movimento básico da diversidade cultural seja de resistência. São muito poucos os incentivos para a preservação e disseminação da diversidade cultural e, em geral, quando aplicados, ajudam mais a construir estereótipos e estranhamentos do que na ampliação do reconhecimento desta diversidade.

68. Segundo o IPEA (2004a, p. 68-70), três são os principais desafios para a implementação de uma política cultural consistente no Brasil: a) o reconhecimento da diversidade, destacando-se múltiplas dimensões: “sistemas de produção simbólica e a experiências culturais concretamente vividas, que, devidamente valorizadas, enriqueceriam o acervo de repertórios e exemplos culturais disponíveis. A presença de espaços e tecnologias de uso público que permitam a disseminação dessa diversidade é outro aspecto que deve ser enfatizado quando fala-se de diversidade”; b) incremento da economia de cultura, que implica a geração de trabalho e renda pela cultura, para o que, “o grande problema enfrentado é a falta de recursos (segundo o órgão, os recursos orçamentários públicos totais aproximam-se de R$ 2 bilhões, com 13% de origem federal, 36% estadual e 51% municipal – sendo que municípios com até 50 mil habitantes investem menos de 1%); e c) “o fortalecimento das instituições públicas, tendo em vista ser tarefa do Estado, em suas diversas esferas de atuação, assegurar e democratizar o acesso a esse vasto repertório de possibilidades simbólicas e existenciais”.

69. O Contra Informe da sociedade civil apresenta nove propostas de recomendações para avançar na realização do direito à cultura.

70. As indicações aqui apontadas requerem, para compreensão e posicionamento, a consulta ao texto completo. Por isso, recomenda-se sua leitura e análise.



[1] CESCR/ONU. Observações Conclusivas do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o Brasil. Distr. GENERAL E/C.12/1/Add.87 23 May 2003.

[2] As referências de todos os dados citados estão no texto principal do Contra Informe.

Nenhum comentário: