segunda-feira, 30 de junho de 2008

Informe da Sociedade Civil para a VI Conferência Estadual de Direitos Humanos de SP

Informe da Sociedade Civil para a VI Conferência Estadual de Direitos Humanos de SP

I – Apresentação

Este informe tem por objetivo oferecer uma contribuição das entidades da sociedade
civil para estimular o debate sobre os direitos humanos que ocorrerá na VI Conferência Estadual de Direitos Humanos, preparatória para a XI Conferência
Nacional de Direitos Humanos.

Em que pesem as diferenças regionais apresentadas no estado de São Paulo,optou-se por estruturar este Informe por segmentos e temas, a partir de contribuições enviadas por entidades, movimentos e fóruns da sociedade civil, como resposta a uma carta aberta de mobilização divulgada pelos representantes da sociedade civil na Comissão Organizadora da VI Conferência Estadual de Direitos Humanos.

Partiu das seguintes entidades a iniciativa de elaboração deste Informe: B'nai B’rith
Associação Beneficente e Cultural do Brasil – SP; Fórum de Mulheres Negras do Estado do Estado de São Paulo; Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; Fórum Paulista de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST);Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH); Movimento Negro Unificado (MNU); Rede da Juventude Pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (REJUMA); e Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo.

Até o fechamento deste Informe, recebemos textos e dados das seguintes entidades, movimentos e fóruns: Associação Nacional de Pós-Graduandos; B’nai B’rith; Brasil para Todos; Centro de Defesa de Direitos Humanos de Campinas;Centro Santo Dias de Direitos Humanos; Fórum Paulista GLBTT; Geledés – Instituto da Mulher Negra; Instituto Pólis; Movimento Negro Unificado; Movimento Social de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; e Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Embora não tenham enviado contribuições escritas, participaram também, em algum momento do processo de construção deste Informe, as seguintes entidades:Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP-SP); Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOSP); Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); Cáritas-SP; Centro de Estudos

das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT); Comissão Brasileira de Justiça e Paz; Conselho Regional de Psicologia – SP; Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN/SP); Intersindical; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Jornal A Nova Democracia; Observatório das Violências Policiais (OVP-SP);Paróquia Imaculada Conceição e Pastoral da Mulher Marginalizada.

Para alguns segmentos e temas foram utilizados dados apresentados nos relatórios da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, da Anistia Internacional, do Relatório
Alternativo de Monitoramento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher do Brasil e do Contra-Informe Pidesc. Utilizamos estes instrumentos pois são construídos em conjunto com diversos representantes de organizações da sociedade civil. Infelizmente, não foi possível trabalhar com todos os segmentos e temas, pois o tempo para a elaboração deste relatório foi muito reduzido. Pedimos, de antemão, a compreensão de todas e todos. Desta forma,ressaltamos que as contribuições aqui apresentadas não pretendem esgotar a problemática, mas sim servir de convite à reflexão que gostaríamos de completar
nas conferências regionais e nas Conferências Estadual e Nacional.

II. Introdução

O Programa Nacional de Direitos Humanos, seja na versão de 1996, ou na de 2002,foi um passo importante para a construção de uma política nacional de direitos humanos em nosso País. Da mesma forma, o Programa Estadual de Direitos Humanos de São Paulo de 1997 teve a mesma relevância, inclusive por se tratar do primeiro documento desse tipo elaborado em nível estadual.

Entretanto, uma indagação que se coloca em todas as discussões, em conferências
ou não, é a seguinte: com tantas proposições referentes aos direitos humanos, seja
em nível federal, seja em nível estadual em SP, o que explica a dificuldade de implantação efetiva de um programa de direitos humanos, que dê conta das demandas históricas da população brasileira como um todo, mas especialmente daquelas e daqueles que historicamente sempre foram os marginalizados,discriminados e oprimidos no Brasil? Quais os principais obstáculos à construção efetiva dos direitos humanos da classe trabalhadora no Brasil, tanto no que concerne aos direitos sociais dos trabalhadores(as) quanto aos direitos de organização sindical? E como podemos avançar na realização de outras reivindicações históricas de nosso povo, como a reforma agrária radical sob o controle dos trabalhadores rurais, a reforma urbana que garanta moradia digna,saneamento básico e urbanização, atendimento pleno e humanizado à saúde,garantia de uma educação pública, gratuita e de qualidade a todas e todos ? Quais as estratégias que podemos adotar para que o Brasil avance de maneira efetiva na implementação de políticas afirmativas da igualdade de gênero, raça-etnia, geração, orientação sexual e identidade de gênero, condição física ou sensorial, combatendo com eficácia toda e qualquer forma de discriminação, como bem proclama o inciso IV do artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Consideramos que nossa reflexão deve obrigatoriamente encarar o papel histórico
do Estado brasileiro, e as posições das diferentes classes e grupos sociais em
relação a esse Estado. Desde os tempos de colônia até o advento da República, o
Estado brasileiro sempre foi um instrumento de manutenção dos privilégios e riquezas das classes dominantes, e de feroz repressão às classes trabalhadores e ao povo pobre. Da mesma forma, nunca deixou de ter a marca da dominação branca, patriarcal, heterossexista e oligárquica, embora a partir de certos períodos históricos localizados no século XX as pressões contra esta situação tenham aumentado. Mas a solução daqueles que ocupavam – e continuam ocupando – os lugares no topo da pirâmide da sociedade brasileira sempre foi a negação de qualquer direito aos “de baixo, e o Golpe Militar de 1964 que instituiu a mais longa ditadura de nossa história é um bom exemplo disso.

Num momento em que mais e mais movimentos sociais se organizam em luta por suas demandas, e tantos espaços de debates sobre os direitos humanos são abertos, é necessário identificarmos também as limitações que as propostas dos diferentes programas de direitos humanos têm encontrado para sua implementação em função do modelo de estado que temos e das pesadas heranças históricas que carregamos.

Um ponto do qual não podemos nos afastar é o que se refere aos recursos necessários à implementação dos programas de direitos humanos. Lamentavelmente, mesmo com a promulgação do Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996 (I PNDH) e 2002 (II PNDH) a destinação de recursos orçamentários para esses programas tem sido irrisória, para não dizermos inexistente. E embora o atual Governo tenha transformado a Secretaria de Esta do de Direitos Humanos em Secretaria Especial de Direitos Humanos, ampliando seu “status” e vinculando-a diretamente à Presidência da República (antes estava subordinada ao Ministério da Justiça) a parcela do orçamento voltada tanto à SEDH quanto ao Programa Nacional de Direitos Humanos continua quase simbólica. E o
mesmo acontece no Estado de São Paulo, cujo órgão responsável pela execução do programa Estadual de Direitos Humanos é a Secretaria da Justiça e da Defesa da
Cidadania, e basta uma leitura dos PPAs de 2004/2007 e 2008/2011 para de chegar
a essa conclusão.

Inevitável também a observação sobre a inadequação das estruturas governamentais voltadas aos programas de direitos humanos, seja em âmbito federal, seja em âmbito estadual. Embora na esfera federal tenha avançado a interlocução da SEDH com os demais ministérios para a implementação de algumas políticas de direitos humanos, as resistências continuam imensas em algumas áreas (vide a questão dos arquivos da ditadura militar). E no Estado de São Paulo, quase nada se conseguiu de parceria de outras secretarias com a SJDC para a implantação do PEDH, embora já se tenham passado mais de 10 anos de sua promulgação. A truculência que ainda impera nas ações da Polícia Militar – com algumas raras exceções - junto aos segmentos historicamente vulneráveis e discriminados bem como na confrontação aos movimentos sociais organizados é uma mostra da gravidade desse problema.

Finalmente, não podemos esquecer que em 2004 o Governo Federal convocou uma Conferência Nacional de Direitos Humanos nos mesmos moldes da atual, para discutir a criação de um Sistema Nacional de Direitos Humanos. Em que pesem os inúmeros equívocos cometidos naquele processo por parte da SEDH, consideramos que parte do debate deve ser retomado, pois um sistema desse tipo poderia contribuir com algum avanço nesta área.

II.1 - Direitos Humanos em São Paulo

II.1.1 - O Programa Estadual de Direitos Humanos
O atual Programa Estadual de Direitos Humanos, de 1997, é fruto de intensa mobilização da sociedade civil, das entidades de direitos humanos, dos movimentos
sociais em torno de três elementos centrais:

a. nossa história de lutas pelos direitos humanos em São Paulo e a pujança da
elaboração teórica em torno dessa prática social;
b. as alianças que estabelecemos com os espaços institucionais conquistados dentro do Estado ao longo dessa história de lutas, em particular no Parlamento e na implementação de políticas públicas de promoção de direitos humanos;
c. a crítica ao caráter restrito e parcial do Programa Nacional de Direitos Humanos, em particular à ausência dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, bem como de menções ao combate à discriminação de segmentos expressivos, como LGBTT, por exemplo.

Intensa participação popular precedeu a 1ª Conferência Estadual de Direitos Humanos, em particular nas audiências públicas realizadas nas regiões do Estado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania e pelo Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe).

O resultado foi a incorporação de todas as dimensões dos direitos humanos omitidos
no 1º Programa Nacional de Direitos Humanos e a aprovação de 303 compromissos do Estado com a defesa e promoção dos direitos humanos que, se não continham em si todas as reivindicações da sociedade civil, era o mais completo rol de ações produzido até então para nortear a conduta do Executivo, a elaboração legislativa do Parlamento e a cobrança e mobilização da sociedade civil.

Outro aspecto positivo foi o reconhecimento, pelo Executivo, do caráter deliberativo
da Conferência, visto que, diferentemente do governo federal, o Governador Mário
Covas reconheceu na íntegra os seus resultados, editando um decreto com todos os
compromissos aprovados pela Conferência.

II.1.2 - As Conferências Estaduais de Direitos Humanos
Chegamos à VI Conferência Estadual de Direitos Humanos com um acúmulo de experiências bem sucedidas de mobilização social em torno dos debates das conferências anteriores, que produziram resoluções importantes tanto no que diz respeito à participação de São Paulo no contexto nacional quanto no monitoramento das ações previstas nos compromissos do Programa Estadual.
Entre os elementos importantes levantados por estas Conferências anteriores sobre
a execução pelo Estado dos compromissos do PEDH, destacamos:

a. a falta de mecanismos eficazes de monitoramento das ações do Programa Estadual. Sucessivas tentativas foram feitas, sob gestão de diferentes Secretários Estaduais de Justiça e Defesa da Cidadania, mas todos neles falharam, visto que a capacidade gerencial de programas capazes de viabilizar no Executivo os elementos do Programa sempre foi muito baixa, em alguns momentos nula;
b. a falta de compromisso do conjunto das Secretarias de Estado com os compromissos assumidos pelo PEDH, como se o seu conteúdo fosse responsabilidade da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania e não do Estado como um todo;
c. a falta de regionalização das políticas públicas de direitos humanos, muitas
vezes limitada a experiências piloto desenvolvidas na capital, sem capilaridade nas diversas regiões do interior do Estado, em particular nas regiões mais distantes e de menor densidade populacional, onde a presença do Estado na área de direitos humanos é altamente deficitária;
d. a falta de priorização das políticas de direitos humanos nos Orçamentos Anuais do Estado do São Paulo, nas Leis de Diretrizes Orçamentárias e nos Planos Pluri-Anuais, que ao longo dos últimos anos expressão uma visão neoliberal de Estado que reduz investimentos nas áreas sociais e de promoção de direitos, privatiza bens e serviços e concentra recursos em áreas de interesse do grande capital;
e. a falta de orçamento e de valorização pelo Executivo para as atividades do Condepe, instrumento importante criado com poderes expressivos porém limitados pela falta de recursos financeiros e cooperação do Executivo;
f. a adoção, em momentos importantes e dramáticos das crises penitenciária e de segurança pública, de discurso claramente contraditório com o PEDH por parte do Governador Geraldo Alckmin, dos Secretários de Segurança Pública e Administração Penitenciária e de outras autoridades do sistema de segurança, contribuindo para um retrocesso no compromisso do Estado com a criação de uma cultura de valorização dos direitos humanos junto à sociedade;
g. o conservadorismo da Assembléia Legislativa, que não impediu a aprovação de importantes matérias legislativas concretizando propostas do PEDH, mas impediu avanços maiores em determinadas matérias em que dezenas de projetos importantes são ignorados na pauta legislativa, bem como vetos do Governador a projetos de interesse dos movimentos de direitos humanos;
h. a postura parcial do Ministério Público do Estado de São Paulo na averiguação de fatos e violações de direitos humanos por parte de altas autoridades do Governo do Estado, ao mesmo tempo em que setores do MPE conseguiram criar e manter espaços, em particular nos Centros de Apoio Operacional e na Assessoria Especial de Direitos Humanos, que encaminharam importantes ações na defesa de programas do PEDH;
i. a total ausência do Poder Judiciário e de seu envolvimento na execução do programa, não só pela recusa em participar de todas as Conferências
Estaduais como principalmente pelo caráter elitista da relação que estabelece
com a sociedade civil e o conservadorismo de decisões sobre causas importantes, em parte afetado pela fusão ao antigo TJ com os antigos Tribunais de Alçada, que arejaram em alguns aspectos a cúpula do Poder Judiciário paulista.

II. 2 – Situações de Permanente Tensão
Entre os temas que permanecem como elementos de permanente tensão entre sociedade civil e Estado na consecução dos objetivos do PEDH, destacam-se:
a. o gigantismo dos problemas do sistema penitenciário paulista, suas mazelas cíclicas representadas pela superlotação das unidades penais, falta de oportunidades de trabalho e de educação dos presos, descumprimento da Lei de Execuções Penais, em particular no que diz respeito à progressão de regime, a continuidade de práticas de tortura em unidades penais e de violência para contenção de presos e as deficiências de acesso da sociedade civil às unidades penais para sua fiscalização;
b. o crescimento das organizações criminosas no interior das unidades penais,tolerada pelo poder Executivo e em muitas ocasiões com ele pactuado, com impactos importantes no crescimento da violência dentro e fora dos presídios;
c. a manutenção dos parâmetros ultrapassados de segurança pública por sucessivas gestões que deixaram de priorizar a integração das policias, o policiamento comunitário, a participação popular, a independência dos órgãos periciais, o caráter profissional da inteligência policial e o combate à violência, à tortura e a corrupção, preconizadas pelo PEDH como políticas capazes de alterar a permanente crise de segurança no Estado;
d. a falta de políticas claras e definitivas de adequação das instituições do Estado vinculadas à infância e a juventude aos parâmetros do ECA, que permanece ainda ignorado nas políticas de assistência à criança em situação de rua, principalmente nos centros urbanos das regiões metropolitanas, na execução das medidas sócio-educativas em meio aberto, na manutenção da estrutura arcaica da antiga FEBEM sob a nova terminologia da Fundação CASA e na falta de políticas específicas para setores expressivos da adolescência e juventude para combater a sua inserção no mundo do crime, à drogadição, ao desemprego e a falta de acesso e produção cultural;
e. a falta de uma política de assistência a vítimas da violência, expressa na
fragilidade institucional da atual Defensoria Pública – uma conquista da sociedade civil ainda não levada na devida importância pelo Executivo -, das políticas de assistência a mulheres, jovens, crianças vítimas da violência, da falta de integração das políticas do Estado com políticas inovadoras da União expressas no SINASE, no PRONASCI, na área de educação e cultura e na falta de articulação entre órgãos estaduais e políticas municipais desta área.
f. a total invisibilidade dos povos indígenas, ciganos e nômades, da população de rua, de refugiados e de migrantes, o que acarreta a ausência de políticas públicas de assistência social, de educação, de promoção de oportunidades de trabalho, de moradia e de saúde. Ressalta-se, ainda, ineficaz atuação no combate ao tráfico de mulheres e crianças para fins de exploração sexual.

III – Diagnósticos da Situação dos Direitos Humanos por Segmentos e Temas
III.1 - Segmentos Historicamente Vulneráveis
III.1.1 - Os Programas de Direitos Humanos e a população LGBT
O I PNDH de 1996 era omisso na apresentação de quaisquer propostas voltadas ao segmento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), embora o citasse na caracterização dos segmentos mais vulneráveis à violação dos direitos humanos. Essa grave lacuna foi superada no II PNDH (2002), que conta com uma série de proposições neste sentido. Entretanto, pouco se avançou na implantação de quaisquer das propostas ali elencadas, o que gerou uma forte cobrança por parte do movimento social e a consequente edição, em maio de 2004, do Programa “Brasil Sem Homofobia”. Iniciativa inédita até em nível internacional, este programa – construído em parceria com a sociedade civil - tem como novidade – além de uma ampliação das propostas e dos segmentos abrangidos, com recortes de gênero e raça/etnia – uma maior articulação com os demais ministérios, além da SEDH. É evidente que muito do que consta no referido programa ainda não saiu do papel, seja pelas limitações orçamentárias já mencionadas, seja pelas dificuldades presentes na maioria das ações interministeriais neste modelo de estado, e ainda persiste a inexistência de qualquer legislação em âmbito federal que garanta os direitos mais elementares à população LGBT bem como a ação dos poderes
públicos no combate à homofobia, especialmente a criminalização da homofobia.

No Estado de São Paulo, apesar do esforço de alguns servidores públicos da SJCD ainda é pouco significativa a atuação do Governo em favor da população LGBT. A única conquista até hoje é a Lei nº 10.948 de 2001, que pune os atos discriminatórios em razão da orientação sexual e da identidade de gênero, mas mesmo neste caso a atuação do Governo para sua efetiva implementação tem sido absolutamente insuficiente. As propostas aprovadas na I Conferência Estadual LGBT poderão ser uma boa base para que possamos avançar neste sentido.

III.1.2 Quilombolas

O reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas trouxe uma significativa inovação para o direito agrário brasileiro. A novidade está não somente
na garantia da propriedade para um grupo étnico, mas na determinação de que essa ropriedade deve possibilitar a manutenção da sua cultura e da sua organização social. Nesse sentido, o cumprimento do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (ADTC) contribui para o debate e a construção de uma política fundiária que reconheça e respeite a pluralidade de formas de ocupação do campo decorrentes da diversidade sociocultural e étnica da sociedade brasileira, reconhecida e consagrada pelos artigos 215 e 216 da Constituição.

No Estado de São Paulo existem mais de 35 comunidades quilombolas. A maioria delas, cerca de 30, está na região do Vale do Ribeira, distribuídas por diversos 10
municípios, tais como Eldorado, Iporanga e Barra do Turvo. Outras comunidades
estão localizadas no Litoral Norte, na região de Sorocaba e no município de Itapeva.
Em São Paulo, o decreto 42.839 que regulamenta o artigo 3º da Lei nº 9.757, de 15
de setembro de 1997, dispõe sobre a legitimação de posse de terras públicas estaduais aos Remanescentes das Comunidades de Quilombos, em atendimento ao artigo 68 do (ADTC). Além deste decreto, o PEDH assumiu a titulação definitiva das terras das comunidades remanescentes de quilombos como uma de suas ações, bem como o apoio a programas que propiciem o desenvolvimento econômico e social destas comunidades. Apesar disso, até maio de 2007, apenas cinco comunidades tinham recebido os títulos de suas terras: Ivaporundava, São Pedro,Pedro Cubas, Pilões e Maria Rosa, todas no Vale do Ribeira e receberam os títulos do governo do Estado de São Paulo.

Os interesses antagônicos têm exercido crescente pressão para impedir a concretização dos direitos quilombolas. O foco central dessa disputa, porém, é o território. Os quilombolas têm sido alvo de campanha discriminatória que questionou na imprensa e no legislativo a legitimidade de seus direitos. A massiva campanha “anti-quilombola” e o lobby da bancada ruralista incluiu a divulgação muitas matérias em telejornais, revistas e jornais de grande circulação, conforme registra o sítio eletrônico da organização não-governamental Koinonia. A imprensa acusou o governo federal de reconhecer comunidades como quilombolas sem critérios e extrapolar os direitos assegurados pelo artigo 68 do ADCT da Constituição Federal.

Na Justiça e no congresso Nacional grupos contrários procuram anular o decreto
4.887/2003 que regulamenta o processo de titulação das terras .

De acordo com relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (2007), a
principal preocupação é a tentativa de desqualificar os grupos que se auto-definem
como quilombolas. Além da violência física, a violência contra os quilombolas
adquire um caráter eminentemente ideológico e se desenvolve em quatro frentes: 1.
Nos meios de comunicação social, perpetrando uma campanha contra o processo de auto-reconhecimento das comunidades; 2. no Parlamento, pela revogação de decreto 4.887/2003 que regulamenta o processo de titulação das terras; 3. no Judiciário, por ações de inconstitucionalidade; e 4. no Executivo, pela ausência de implementação de políticas que garantam este direito. Além disso, há pressãotambém para que o Congresso Nacional não aprove o Estatuto da Igualdade Racial que regulamenta de forma mais permanente a questão.

III.1.3 - População Negra
Em São Paulo, apesar da existência do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, das 14 metas do PEDH e das propostas presentadas e deliberadas na I Conferência Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, observam-se ainda muitos entraves para a garantia dos direitos da população negra. Os principais problemas relacionados à população negra no estado referem-se a: racismo, homicídios de jovens negros, trabalho precário e desemprego, a exclusão educacional, a intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras e a violação dos direitos culturais, a nãotitulação das terras quilombolas e a situação das mulheres negras.

As discriminações contra a população negra se manifestam, cotidianamente, a) nas
imagens discriminatórias da população negra no material didático e nos meios de
comunicação; b) na falta da simbologia da cultura negra ou mesmo fotos de crianças
e da família negra em espaços públicos; c) na constante invisibilidade da história
negra nos livros escolares, apesar da promulgação da Lei Federal 10.639/03 que versa sobre a inclusão da História da África e Afro-brasileira nos currículos escolares; d) na falta do quesito de cor/raça na certidão de nascimento e prontuários de serviços de saúde; e) nos espaços do trabalho onde as marcas da discriminação ocorrem na seleção, nas competências indefinidas, na ocupação de altos cargos, na mobilidade, na hierarquia; f) nas diferenças salariais entre brancos e negros, maior ainda entre homens brancos e mulheres negras (cerca de 295%); g) nos altos índices de mortes dos jovens negros vítimas da violência policial e urbana; h) nos altos índices de mortalidade materna e nas mortes resultantes de abortos inseguros das mulheres negras.

Muito se tem discutido acerca da adoção de políticas públicas de ações afirmativas
para a população negra, tais como a adoção de cotas nas universidades públicas e
nos serviços públicos e mercado de trabalho. A busca por oportunidades de acesso
a espaços historicamente negados tem sido o principal eixo de atuação do movimento negro nas últimas três décadas. São ainda necessárias ações concretas de combate às desigualdades de oportunidades provenientes do racismo.

III.1.4 - Mulheres
O Contra-Informe da Sociedade Civil ao relatório nacional brasileiro sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher apresenta alguns
questionamentos que expõem a fragilidade da situação das mulheres no país. O texto ressalta para a persistência de muitas desigualdades, em especial às dificuldades de acesso às políticas públicas, aos bens públicos e ao bem-estar social. Desigualdades que se acentuam devido ao pertencimento étnico, geracional, regional ou socioeconômico, e dificultam o avanço das mulheres na sociedade brasileira.

Apesar da promulgação da Lei Maria da Penha, que visa coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher no país, uma em cada quatro mulheres no Brasil já foi
vítima de violência doméstica. A agressão ocorre, em geral, por pessoas próximas à
mulher (namorados, maridos, companheiros e/ou ex-parceiro). A cada 15 segundos uma mulher é impedida de sair de casa e, outra, forçada a ter relações sexuais contra sua vontade. Pesquisa do MNDH aponta que cerca de 70% das mulheres brasileiras assassinadas são vítimas no âmbito de suas relações domésticas; e 66,3% dos acusados em homicídios contra mulheres são seus parceiros.

Não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha representa uma importante conquista
do movimento feminista e de mulheres, configurando-se em um avanço significativo
da legislação brasileira em matéria de combate à violência doméstica e familiar
contra as mulheres. Mas este avanço e os conseqüentes efeitos mobilizatórios na
sociedade e no Estado para que a Lei “Maria da Penha” seja implementada eficazmente não devem diminuir a necessidade da adoção ou da reforma de outras leis e de outras políticas públicas de combate a variadas formas de violência e de discriminação contra as mulheres.

Em São Paulo, o maior estado da federação e que, proporcionalmente, representa a
maior população feminina do país, as políticas de atendimento a mulher, em todas
as esferas da vida social, são não apenas insuficientes para atender à demanda,
como estão livres de qualquer acompanhamento e monitoramento por parte da sociedade civil, dado a total desarticulação do Conselho Estadual da Condição Feminina. Além disso, o Estado de São Paulo ainda não assinou o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

No que diz respeito às oportunidades de trabalho, um estudo do DIEESE revela que
apesar de uma diminuição na taxa de desemprego entre as mulheres da região metropolitana de São Paulo, houve uma maior oportunidade de emprego em áreas cujo predomínio é masculino. Elas ainda ocupam menos postos no mercado de trabalho que os homens e têm salários mais baixos, mesmo quando desempenham a mesma função. As mulheres conquistaram mais espaço, mas ainda não conseguiram vencer as desigualdades quanto a salários e cargos. Pesquisas mostram que as mulheres estudam mais que os homens e são responsáveis financeiramente por um número cada vez maior de lares, apesar de ganharem menos. As mulheres de baixa renda ainda não têm acesso à educação de qualidade, seja no ensino fundamental, médio ou superior, o que garantiria
condições de igualdade para se apoderarem do desenvolvimento necessário para a
eliminação dos estereótipos acarretados pela falta de conhecimento e pela pobreza.
a. Mulheres Negras As mulheres negras correspondem a 43 milhões de pessoas, o que equivale a 25% do total da população brasileira. Apesar disso, nem o PNDH e nem o PEDH propuseram metas de ação específicas para esta população, que sofre as mais
diversas violações de direitos humanos. Segundo dados do IBGE, compilados pelo
Instituto Geledés, o analfabetismo entre as mulheres negras é 3 vezes maior do que
das mulheres brancas. Do total de famílias sem rendimento, 60% são chefiadas por
mulheres negras. O desemprego atingiu 14,1% entre as mulheres negras comparado a 6,3% entre homens brancos em 2005. As meninas negras representam 75% das trabalhadoras domésticas infantis.

Os assassinatos de jovens negras correspondem a 58% dos óbitos por causas externas (homicídios, suicídios e acidentes). Na área da saúde da mulher, 44,5% das mulheres negras não tiveram acesso ao exame clínico de mamas, comparadas a 27% das mulheres brancas. Entre 2000 e 2004 a infecção pelo HIV subiu de 36% para 42,4% entre mulheres negras. Entre homens negros subiu de 33,4% para 37,2%. Entre a população branca a incidência do HIV caiu no mesmo período.

Estudo recente da Fundação Seade sobre óbitos no município de São Paulo, em 1995, revela que 40,7% das mulheres afrodescendentes morrem antes dos 50 anos. Além disso, mulheres afro-descendentes e brancas com o mesmo padrão sócioeconômico apresentam diferenças na taxa de mortalidade de seus filhos no primeiro ano de vida. A taxa de mortalidade infantil por mil nascidos em 1993 era de 37 crianças filhas de mãe branca contra 62 crianças de mãe afro-descendente. Há um agravamento da violência quando a mulher é negra. À violência de gênero soma-se a violência racial. Mulheres negras, entre 16 e 24 anos, têm, ainda, três vezes mais probabilidades de serem estupradas que as mulheres brancas. De acordo com Sueli Carneiro, diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra, o chamado ''estupro colonial'' ocorrido em nosso país, perpetrado pelos senhores brancos sobre mulheres negras e indígenas, é um dos pilares da democracia racial pela mestiçagem que produziu. Para ela, esse fato está na origem de todas as construções sobre a identidade nacional e das relações hierárquicas de gênero e raça presentes em nossa sociedade. “Esta tradição continua legitimando formas particulares de violências vividas pelas mulheres negras, dentre as quais se
destacam o turismo sexual e o tráfico de mulheres, situações que apresentam o corte racial como um marcador fundamental”, salienta. E perpetua “a prática, impunemente tolerada, da utilização das mulheres negras, especialmente as empregadas domésticas, como objetos sexuais destinados à iniciação sexual dos jovens patrões ou de diversão sexual dos mais velhos”.

b. Mulheres encarceradas
As mulheres encarceradas representam um grupo de total invisibilidade para as
políticas públicas e de direitos humanos. A ausência de dados sobre suas situação
é, em si, revelador, pois uma política pública se constrói a partir de indicadores. Um estudo realizado pela Pastoral Carcerária e pelo ITTC sobre a situação em que
vivem as mulheres presas do Estado de São Paulo chama a atenção para a situação
destas mulheres. A superpopulação carcerária, a falta de assistência médica, de
condições estruturais do sistema penitenciário, que respeitem as diferenças entre
homens e mulheres, estão entre os problemas apontados pela pesquisa. Segundo o
estudo, as mais recentes estatísticas da Secretaria da Administração Penitenciária,
disponíveis a partir de fevereiro de 2005, apontam para um total de 3.410 vagas no
sistema penitenciário feminino do Estado de São Paulo (regime semi-aberto,fechado e medida de segurança). A população carcerária feminina total em penitenciárias e cadeias de São Paulo era de 8.319 presas, resultando daí um déficit de 4.909 vagas.
Há um maior investimento em construções do sistema penitenciário para abrigar cadeias) enfrentem uma taxa de superpopulação de 119%. Em fevereiro de 2005,eram 4.015 mulheres vivendo em 3.372 vagas. A inauguração de 1 mil e 200 novas vagas, com a construção de duas novas penitenciárias femininas e de dois novos centros de ressocialização, não foi suficiente para abrigar 53% das presas mulheres que ainda estão detidas fora do sistema penitenciário, em cadeias públicas administradas pela polícia, sob jurisdição da Secretaria da Segurança Pública.

O estudo constatou que o direito das mulheres de serem detidas em instalações separadas por sexo é amplamente respeitado dentro do Estado de São Paulo. Mas,apesar das mulheres estarem detidas em estabelecimentos separados, as instalações não possuem estrutura adequada para elas; a vasta maioria das penitenciárias e cadeias foram "adaptadas" de penitenciárias e cadeias públicas masculinas existentes. Exemplo disso é que apenas uma das penitenciárias femininas visitadas dispunha de berçário adequado para as mulheres cuidarem de seus bebês. Há ainda impedimentos para que as mulheres recebam o cuidado necessário à saúde são: ausência de profissionais da área da saúde; falta de assistência ginecológica; escassez de medicamentos; precárias instalações de assistência à saúde; e falta de pessoal para a assistência especializada.

A violência contra as mulheres presas começa já no momento da detenção e continua no dia-a-dia da cadeia; com maus-tratos relacionados a procedimentos de revista dentro da prisão - ou seja, durante situações de inspeção, regulares ou não, as policiais adentram as prisões e cadeias para proceder buscas de equipamentos, drogas ou armas. As mulheres que ocupam celas individuas, além do castigo de ficarem isoladas, são particularmente vulneráveis a abuso.

III.1.5 – Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais1
Em muitas regiões do país, o aumento da produção de etanol tem causado a expulsão de camponeses de suas terras e gerado dependência da chamada “economia da cana”, onde existem somente empregos precários nos canaviais. O monopólio da terra pelos usineiros impede que outros setores econômicos se desenvolvam, gerando desemprego, estimulando a migração e a submissão de trabalhadores a condições degradantes. Esse padrão de exploração tem causado sérios problemas de saúde e até a morte de trabalhadores e trabalhadoras. No estado de São Paulo, entre 2005 e 2006, o Serviço Pastoral dos Migrantes registrou 1 Este item foi reproduzido a partir do Relatório de Direitos Humanos 2007 da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 17 mortes de trabalhadores(as) migrantes no corte da cana. Em 2007, foram registradas cinco mortes de migrantes por excesso de trabalho nos canaviais do estado. Em 2005, a Delegacia Regional do Trabalho registrou 416 mortes nas usinas do estado, maioria por acidentes de trabalho ou em conseqüência de doenças como parada cardíaca, câncer, além de casos de trabalhadores carbonizados durante as queimadas. O Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho, estima que 1.383 canavieiros tenham morrido em situação semelhante entre 2002 e 2006.

Em agosto de 2007, procuradores da região de Bauru flagraram um esquema de fraude de documentos de trabalhadores(as) rurais a partir de uma empresa de fachada. O “kit fraude” continha documentos em branco, que as empresas forçavam os trabalhadores(as) a assinar para serem contratados(as), além de documentação irregular, como: pedido de demissão, termos de rescisão de contrato de trabalho, registro de trabalho, recibos de fornecimento de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), contrato de experiência, prorrogação de contrato de experiência, contrato de safra (período da colheita) e contrato por prazo determinado, todos assinados em branco pelos trabalhadores.

O município de Mineiros do Tietê, no interior paulista, teve, por determinação
judicial, suspensão do corte de cana até a regularização, por parte das usinas, da
situação dos trabalhadores(as). Em praticamente todas as investigações realizadas
nas usinas de São Paulo foram constatadas violações de leis trabalhistas. Dados do Serviço Pastoral do Migrante dão conta de diversas mortes por exaustão nos canaviais paulistas. As mortes são ocasionadas pela carga de trabalho: mais de 10 mil golpes de facão por dia para cortar, pelo menos, as 10 toneladas médias de cana. Mas também há casos de acidentes e mortes de trabalhadores(as) nos canaviais em conseqüência de doenças e acidentes de trabalho. Em apenas um ano, foram registradas pela Delegacia Regional do Trabalho 416 mortes em usinas de cana de açúcar, em São Paulo.

III.1.6 - Trabalhadores Urbanos

O trabalho é direito fundamental do ser humano. Segundo o DIEESE/SEADE, o desemprego na região metropolitana de São Paulo é da ordem de 14% da População Economicamente Ativa, ou seja, atingindo cerca de um milhão e meio de pessoas. Enquanto há desemprego por um lado, por outro lado os trabalhos continuam deteriorados, com menos da metade dos ocupados possuindo carteira assinada.

A realidade para os que possuem empregos formais também está longe de rósea,
pois tem havido aumento da jornada de trabalho, através de bancos de horas e
teletrabalho, e intensificação nunca antes vista nos ritmos de trabalho.
No ambiente das fábricas e empresas são comuns situações de assédio moral, de
lesões por esforços repetitivos, acidentes e intoxicações. Os trabalhadores se
queixam de falta de reconhecimento por peritos do INSS, que rejeitam os laudos
médicos levados pelos trabalhadores, não permitem a presença de acompanhante
do sindicato ou médico particular durante a perícia e frequentemente se recusam a
reconhecer as doenças ocupacionais e suas gravidades, não provendo ao trabalhador o benefício correto ou sua justa prorrogação. São Paulo, por concentrar muitas indústrias e rede de serviços, sofre sobremaneira com esses problemas.

III.1.7 - Crianças e Adolescentes
A Constituição Federal de 1988 foi marcada pela ruptura do marco legal, que tratava
da infanto-adolescência com o olhar menorista (segregacionista), para o direito
pleno das crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que
teve sua base legal nos Pactos e Tratados Internacionais dos quais o país foi
signatário, principalmente da Convenção Internacional do Direito da Criança e do
Adolescente de 1989, que trás todo o acumulo de idéias produzidas pela comunidade internacional, torna-se um dos instrumentos legais mais importante do país. A lei trás, em seu seio, toda a estrutura que possibilita a garantia de direitos
dos meninos e meninas do país; promove a sociedade a ator importante no processo de construção, controle da efetivação da política; e ainda cria um órgão (Conselho Tutelar) que deve zelar para que os direitos das crianças e adolescentes não sejam violados, ou, se o forem, o órgão possa atuar rapidamente, a fim de interromper a violação.

O PNDH definiu uma série de metas (a longo, médio e curto prazo) para garantir a
efetivação desses direitos, mas muito pouco se avançou. Dados o censo do IBGE
(2000) levantou que existiam 60 milhões de crianças e adolescentes entre 0 a 17
anos, representando 36% da população brasileira. Desse universo, indicou que 45%
viviam em famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo. O mesmo
censo indicou que as principais formas de exploração do trabalho infantil são
18
relacionadas à violência sexual, ao tráfico de drogas, ao narcoplantio e aos lixões.
De acordo com o UNICEF, em 2003 existiam, no Brasil, 29 milhões de pessoas vivendo em famílias com renda até meio salário mínimo, um milhão de crianças entre 07 a 14 anos fora da escola; 1,9 milhões de jovens analfabetos; 2,9 milhões de
crianças entre 05 e 14 anos trabalhando. Destas, 220 mil com até 14 anos são
empregadas domésticas e 45 mil expostas nos lixões.

No Estado de São Paulo, o PEDH definiu 22 metas de ação para crianças e
adolescentes, mas sua situação se altera de forma muito lenta, e que o quadro
sócio-econômico negativo sempre recai sobre esse segmento da população. O
estado mais rico da federação insiste em desrespeitar o Estatuto da Criança e do
Adolescente de forma recorrente, não apresentando nenhuma política que responda
a situação de exclusão dos meninos e meninas e ainda por cima atuando para agravar ainda mais essa situação. O Conselho Estadual dos Direitos da Criança sofreu nos últimos seis anos forte investida do governo estadual no que diz respeito à participação da sociedade civil, o que fere um direito civil, participando através de entidades que prestam serviço ao governo do estado ou que se utilize de recursos
do Fundo Estadual dos Direitos da Criança em beneficio próprio, sem que responda
pelo conjunto da política, o que acaba agravando ainda mais o processo de exclusão
de crianças e adolescentes.

O extermínio e a criminalização de adolescentes e jovens têm sido uma constante
no estado de São Paulo, segundo IBGE, UNICEF e Organização dos Estados Ibero-
Americanos para a Educação. O Mapa da Violência de 2006, apresenta que o estado de São Paulo é 9º estado da federação em que há mais morte violentas entre adolescentes e jovens na faixa de 15 a 24 anos, com a média de 56,4 por mil habitantes, ficando acima da média nacional de 51,7 que já é alta.
Há, ainda, a situação da criminalização da adolescência, pois, segundo dados da
SEDH, mais de 40% dos adolescentes internados no país encontra-se no estado de
São Paulo. A solução apontada pelo governo do estado no último período foi a
mudança do nome da instituição de atendimento e a privatização do atendimento,
estabelecendo parcerias com entidades sociais, o que não resolveu a situação dos
adolescentes internados, permanecendo a política de tortura praticada na instituição
contra os jovens internados, só no ano de 2008, já foram assassinados dois
adolescentes na instituição.

III.2. Os temas de permanente tensão
III.2.1 – Segurança Pública
A segurança pública é um direito de todos e um dever do Estado. Este direito está
reconhecido na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Constituição Federal
e teve relevante destaque nos Programas Nacional e Estadual de Direitos Humanos.
No entanto, a realidade mostra que esse direito ainda não foi devidamente oncretizado, pois as políticas públicas de segurança, vigentes em nosso país, não
são eficazes para enfrentar o problema, pois se pautam prioritariamente em medidas
repressivas, atuando, portanto, após a ocorrência do fato.
Apesar de uma diminuição do número de homicídios entre a população em geral,assistimos a um acréscimo do número de mortes provocados por forças policiais. No ano de 2007, foram mortas, em ocorrências policiais no estado de São Paulo,classificadas como resistência seguida de morte, 506 pessoas, segundo os dados
da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
No ano de 2007, foram registradas em São Paulo 28 chacinas, resultando na morte
de 113 pessoas e 52 casos de execução, com 77 vítimas. Tais episódios de extrema
violência resultaram na morte de pelo menos 339 pessoas, segundo dados do
relatório da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Investigações preliminares
apontam a participação de membros das forças de segurança (policiais civis e
militares e, em alguns casos, guardas civis metropolitanos).
É importante ressaltar que tanto as mortes provocadas pela polícia quanto os homicídios decorrentes de grupos de extermínio concentram-se em determinadas áreas das cidades que apresentam, também, outras concentrações de violações de direitos – ausência de saúde, educação, lazer, cultura, etc. Além da concentração de área, os homicídios atingem a uma faixa etária específica: são os jovens de 15 a 24 anos, a sua maioria negros, as maiores vítimas das mortes violentas. A taxa de homicídio entre a população dessa faixa etária é, em média, três vezes maior do que entre os não-jovens (zero a 14 anos e acima de 24 anos).
Um outro dado importante para a reflexão é o da diferença de tratamento, tanto na
fase policial e judicial, destes casos. Em episódios recentes, vimos que crimes
envolvendo pessoas de maior renda são devidamente investigados, merecem atenção da imprensa e rápida resposta dos três poderes. Já nos casos em que morrem pobres não há a mesma preocupação em se estabelecer a autoria do crime e a devida persecução penal do mesmo. Se a segurança é um direito humano, ela deve ser universal.
III.2.1 – Racismo2
a - O genocídio da juventude negra
A discriminação e o preconceito racial vêm afetando de forma especialmente cruel à
população afrodescendente jovem. Nesse caso, ressalta-se à precocidade do
ingresso no mercado de trabalho, as elevadas taxas de desemprego encontradas
junto à população entre 18 e 25 anos, as precárias condições de ensino encontradas
nos colégios públicos de primeiro e segundo grau. as práticas preconceituosas e
discriminatórias presentes em sala de aula e nos livros didáticos as dificuldades de
acesso às universidades, entre outros dilemas. Outra situação especialmente
dramática enfrentada pela população jovem, especialmente a negra, nos dias atuais
reporta-se ao crescimento do narcotráfico e da violência urbana.Deste modo, segundo indicadores levantados por Gláucio Soares e Doriam Borges,no ano 2000, a taxa de homicídio de homens negros, solteiros e com idade entre 20 e 24 anos era de 137,8 por cem mil. À guisa de comparação, este indicador entre as mulheres brancas, casadas e com mais de 60 anos era de 1,5 por cem mil.
O pesquisador Marcelo Paixão e equipe, baseados em dados do SIM/DATASUS,verificaram que, no triênio 1998-2000, do total de óbitos registrados no Brasil na faixa entre os 15 e os 25 anos, entre os brancos, 78,7% foram causados por causas externas sendo que, do total de óbitos registrados, 38,1% ocorreram motivados por homicídios (67,7% por armas de fogo) e 21,2% ocorreram derivados de acidentes de transporte. Entre os negros, na mesma faixa etária, do total de óbitos registrados,82,2% havia sido causado por causas externas, sendo que, do total de eventos fatais registrados, 51,1% foram causados por homicídios (73% por armas de fogo) e 11,1% por acidentes de transporte. Vale salientar que, neste mesmo triênio, na região Sudeste, do total de óbitos registrados na faixa entre os 15 e os 25 anos,entre os brancos o percentual de eventos fatais causados por homicídios foi de 45%e, entre os negros o percentual de eventos fatais causados por homicídios foi de 61%.
2 Diagnóstico extraído de documento elaborado por um conjunto de organizações do movimento negro brasileiro, encaminhado ao Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 22 de Novembro de 2005, pela “Zumbi + 10 – II Marcha contra o Racismo pela Igualdade e a Vida”.

Na verdade, este cenário acaba sendo um ponto de deságüe de condições de vida globalmente precária deste contingente. Segundo indicadores levantados pelo DIEESE, na região metropolitana de São Paulo, em 1998, a taxa de desemprego dos jovens negros entre 10 e 17 anos e, entre 18 e 24 anos, era respectivamente de 49,5% e 29,3%. Entre os jovens brancos, este percentual, naquelas mesmas faixas etárias, era, correspondentemente, de 45,7% e 23,7%. Nesta mesma região metropolitana, em 1998, entre os jovens negros de 10 a 14 anos e, entre 15 a 17 anos, o percentual daqueles que somente estudavam era, respectivamente de 86,5% e de 37,5%, ao passo que entre os jovens brancos, destas mesmas respectivas faixas etárias que somente estudavam era de 91,3% e 47%.
O cenário de violência, acaba produzindo um aumento da criminalização da população jovem, especialmente à negra. Um estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência, da USP, revelou que dos internos da FEBEM no estado de São Paulo, entre 1993-96, 62,3% eram brancos e 37% eram negros. Apesar destes dados evidenciarem um maior percentual de brancos, vale salientar que nesta unidade da federação a composição racial era: 77,3% de brancos e 21,7% de negros. Ou seja, do ponto de vista proporcional os negros se faziam presentes na população jovem infratora em um percentual significativamente maior que sua presença na população como um todo.
Este cenário que combina: sistema educacional precário, desemprego, falta de perspectivas de uma vida digna no futuro, tráfico de drogas e armas, predomínio de
gangues armadas, confinamento nos morros, favelas e periferias, torna os jovens
negros a principal vítima da pandemia da violência que tomou conta das grandes
cidades brasileiras. Movimentos de jovens negros da periferia das grandes cidades,
tais como o hip-hop e os grupos de rappers, já vêm, desde algum tempo,denunciando cabalmente o cenário de massacre, de tipo genocida, que estas populações vêm sendo submetida, impedindo que estes assuntos sejam do desconhecimento público. Neste sentido, a complacência do Estado e da sociedade civil brasileira no que tange este quadro torna a todos potencialmente cúmplices desta roleta macabra.
b. Desigualdade Racial e Segurança Pública O artigo 3º, IV, da Constituição Federal afirma que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O artigo 4º, VIII, versando sobre as relações internacionais repudia o terrorismo e o racismo. O artigo 5º, XLI, afirma que “a lei punirá qualquer discriminação atentória dos direitos e liberdades individuais” e o mesmo artigo 5º,XLII, assegura que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,sujeito à pena de reclusão termos da lei”. O artigo 7º, XXX, proíbe “qualquer discriminação no tocante a salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. Por fim, o artigo nº 227 afirma ser dever da família, do Estado e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente à proteção de toda forma de negligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão. A Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1989, a Lei Caó,passou a definir os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor,regulamentando o artigo 5º, XLI, da Constituição de 1988, que tratava do tema. A Lei nº 9.459, de 13 de Maio de 1997, entre outros temas, trata do crime de racismo por injúria.
Apesar da existência deste importante arcabouço legal, cabe salientar a intenção do
legislador ainda encontra-se distante da realidade vigente. Assim, atualmente,
percebe-se uma evidente dificuldade do poder judiciário no sentido de efetivamente
punir os praticantes de atos criminosos de tipo racista. Assim, até o ano de 2001,
somente em São Paulo, das 546 ocorrências policiais ocorridas naquele estado, 422
se transformaram em inquéritos e apenas 19 (3% do total de ocorrências)
efetivamente acabaram virando processos judiciais.
Resultados de pesquisas recentes vêm demonstrando que a ação do aparato policial
é nitidamente orientado segundo um viés racial. Assim, um levantamento feito pelo
CESEC/UCAM, coordenado por Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, no ano de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, intitulada “Abordagem Policial e Percepções da Discriminação na Cidade do Rio”, mostrou que 55% dos pretos e 39% dos pardos já
haviam sido revistados pela polícia. Este percentual entre os brancos caia para 33%.
A população carcerária brasileira é formada com mais intensidade por pessoas
negras. Muito embora não existam dados nacionais consolidados a este respeito,
segundo indicadores levantados pelo sociólogo Ignácio Cano, baseado em dados do
Censo 2000, da população carcerária masculina do Rio de Janeiro, pelo menos 55%
dos apenados eram negros. Na cidade de São Paulo, em 1997, os negros, em 23
constituindo 27,8% da população paulistana, formavam 44,8% do total da população
carcerária daquela cidade.
A prática da tortura no Brasil sempre foi uma constante, a rigor vindo originada no
período colonial, quando os escravizados eram permanentemente castigados pelos
seus escravizadores. Tais práticas vieram se atualizando ao longo do século XX,
tendo se sofisticado nas ditaduras do Estado Novo e do Regime Militar, quando às
antigas técnicas de tortura (especialmente os espancamentos e à imobilização
forçada), foram somados novos métodos como os dos choques elétricos, o pau-dearara
e os afogamentos. Do mesmo modo, acompanhando a enorme diversidade de nosso país, a tortura muitas vezes é realizada acompanhando variações regionais.
Assim, em matéria publicada pelo repórter Mario Magalhães no Jornal Folha de São
Paulo (14 de Maio de 2000), em Alagoas a tortura envolvia a “borracha” (câmara de
ar de pneus enrolada na cabeça para asfixiar), o “tonel” (afogamento, também feito
em tanques), o espancamento com socos e pontapés e o espancamento com vários
instrumentos. No Distrito Federal e em Goiás, as formas mais freqüentes de verdugo
incluíam à “pica de boi” (membro do animal seco usado como chicote), o choque
elétrico, a asfixia com sacos plásticos e o uso da palmatória (golpes referencialmente na sola dos pés). Nesta reportagem também foram relatadas
formas específicas de torturas no Pará, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no
Rio de Janeiro.
Na verdade, infelizmente, o fim do regime militar acabou se traduzindo no fim destes
expedientes apenas contra os presos políticos, em geral pessoas de classe média e
alta. Para os prisioneiros comuns - condenados, em processo de julgamento ou
mesmo presos por engano -, tais práticas se mantiveram. Isto apesar da Lei nº
9.455, de 7/4/1997, que define os crimes de tortura no Brasil. Entre os anos de 1998
e 1999, as Ouvidorias de Polícia de cinco estados brasileiros receberam 233
denúncias de torturas policiais. Em 2001, uma parceria da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos e o Movimento Nacional de Direitos Humanos lançou uma campanha nacional de combate à tortura – SOS Tortura. Entre outubro de 2001 e outubro de 2002, 1.345 casos foram delatados, sendo que destes 300 foram encaminhados ao Ministério Público. Todavia, somente uma franca minoria de denúncias seguiram adiante rumo à punição dos culpados, denotando uma evidente cultura de impunidade institucional a este respeito.

Ao longo dos últimos vinte anos foi ocorrendo um progressivo aumento no número de assassinatos em nosso país. Assim, de uma média de 25 mil homicídios nos anos 1980, atualmente, na primeira década do século XXI, nosso país assiste a uma média de mais de 45 mil assassinatos por ano. Segundo indicadores levantados por Gláucio Soares e Doriam Borges, baseados em dados do SIM/DATASUS, as taxas de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil em 2000, eram pronunciadamente desiguais em termos de gênero e de raça: homens negros, 56,7 por 100 mil habitantes. homens brancos, 36,7 por 100 mil habitantes, mulheres negras 4,4 por 100 mil habitantes e, mulheres brancas, 3,6 por 100 mil habitantes.
O problema da violência que aflige a população brasileira, infelizmente, acaba
recebendo um grande impulso do aparato policial, justamente aquela instituição que
justamente deveria proteger nossa população. A este respeito os dados referentes à
postura do aparato de segurança pública junto à população pobre e negra são simplesmente aterrorizadores. De acordo com indicadores da Ouvidoria das Polícias
Civil e Militar do Estado de São Paulo, entre 1990 e 1999, as polícias destes estados
mataram 6.672 civis, o que dá uma média de 667,2 pessoas por ano, ou 1,82 pessoas por dia. Um outro estudo realizado por esta mesma Ouvidoria, no ano de 1999, revelou que de 236 mortos pelas polícias neste período, 51,7% não tinham passagem pela polícia, 56% eram inocentes ou no máximo suspeitas, 51% foram mortas pelas costas, 45,9% tinham entre 18 e 25 anos e 43,5% dos casos de homicídios cometidos por policiais não foram testemunhados. No Rio de Janeiro, o quadro não é muito melhor. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, entre 1998 e 2003, as Polícias Civil e Militar protocolaram 4.272 autos de resistência (quando presumivelmente o criminoso morre ao reagir à voz de prisão), constituindo uma média de 1,95 pessoas assassinadas por dia pelas polícias cariocas e fluminenses.
Existe um nítido viés racial no que diz respeito à ação letal do aparato policial no
Brasil. Segundo indicadores levantados por Ignácio Cano, na cidade do Rio de Janeiro, entre 1993 e 1996, 70,2% dos mortos pela polícia eram negros. Vale salientar que na cidade do Rio de Janeiro, os brancos formam cerca de 60% da população. Nesta cidade, neste mesmo período, das pessoas feridas em confronto com a polícia, 56,4% eram negras. Outro dado relevante produzido por este sociólogo diz respeito às clivagens raciais dos resultantes dos conflitos ocorridos em zonas de favelas. Naquele mesmo lapso de tempo, das 513 vítimas geradas em confrontos com a polícia, 17,8% das pessoas brancas ficaram feridas e 82,2% foram mortas. Entre os negros favelados em confronto com a polícia, o percentual de feridos foi de 10% e o percentual de mortos foi de 90%. Também na cidade de São Paulo, de acordo com o mesmo sociólogo, pôde-se perceber um viés racial na ação letal da polícia: em formando 27,83% da população paulistana, os negros formavam 43% da população assassinada por policiais.
III.2.3 A questão agrária
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os conflitos no campo revelam
que “(...) Apesar de em 2006 ter diminuído o número total de incidências de conflitos
no campo, outros indicativos apontam a repressão sobre o trabalhador do campo. O
número de assassinatos aumentou de 38 para 39 mortes. No mesmo sentido,também cresceram as tentativas de assassinato de trabalhadores, com um aumento de 176% em relação a 2005. Foram registradas 72 tentativas em 2006, contra 26 do ano anterior”. A violação de direitos humanos no campo tem, como principal fator, o modelo do agronegócio e a expansão da fronteira agrícola. Na análise do assessor da CPT-Paraná, apresentada pelo relatório da CPT, “A violação de direitos trabalhistas, como o trabalho escravo, está conectada com a expansão do agronegócio, e esta provoca o desgaste do meio-ambiente.”. No ano de 2006, cerca de 20% dos conflitos por terra envolveram as comunidades tradicionais, indígenas,quilombolas, ribeirinhos e outros.
Não obstante dispositivo constitucional que assegura o trabalho como um dos direitos sociais dos trabalhadores, a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica e social, e as desapropriações de terras para fins de reforma agrária das propriedades rurais que não cumprem sua função social, hoje no estado de São Paulo milhares de famílias de trabalhadores rurais sem terra encontram-se acampadas as margens das estradas por todo o Estado. É pública e notória a situação fundiária da região do Pontal do Paranapanema, oeste do Estado de São Paulo, onde as terras são predominantemente Públicas ou devolutas, e o Governo do Estado há anos vem protelando o processo de arrecadação das terras públicas para assentamento de famílias de trabalhadores rurais.
Os principais casos de violações de direitos humanos contra trabalhadores rurais no
Estado ocorrem na região do Pontal do Paranapanema. Segundo o advogado Patrick Mariano Gomes, "a partir de 2002, desencadeou-se na Comarca de Teodoro Sampaio, a maior estratégia de criminalização contra movimentos sociais no País.
Um grupo de promotores da região, visando enquadrar juridicamente as ações de
reivindicações de reforma agrária do MST, elaborou dezenas de denúncias criminais
contra lavradores integrantes do movimento". Estas violações decorrem da reação
dos latifúndios contra a popularidade que o MST ganhou na região, principalmente a
partir de 1990. O advogado Marcos Rogério de Souza revela que entre 1990 e 1999,
94 assentamentos rurais foram implantados e 6.066 famílias assentadas, graças à
organização do MST.
Tramita na Assembléia Legislativa, um Projeto de Lei Estadual nº 578/07 proposto
pelo governo do estado de São Paulo à Assembléia Legislativa, que visa regularizar
a situação fundiária no Pontal do Paranapanema, em favor dos Grileiros.A desigualdade social é gritante e não é por acaso que no ranking das regiões mais pobres do estado de São Paulo, o Pontal ocupa lugar de destaque. Isso não se dá apenas com as conseqüências históricas da grilagem de terras, do desmatamento desmedido das reservas naturais, e da má distribuição de renda, se dá principalmente pela atuação questionável dos governantes de nosso estado. Até hoje, todas as medidas tomadas pelo governo com a promessa de desenvolvimento da região geraram apenas mais exclusão.
A Constituição Federal de 1988 dispõe que as terras públicas serão prioritariamente
destinadas ao programa de reforma agrária, mas, na prática, centenas de hectares
de terras públicas no estado de São Paulo estão sendo subutilizadas, arrendadas
para grandes produtores ou, simplesmente, invadidas por grandes produtores rurais.
Prisões preventivas sem base legal são a principal forma de repressão ao MST no
Pontal do Paranapanema. Geralmente, o argumento utilizado para essas decisões é
a suposta garantia da ordem pública, sendo os trabalhadores acusados de formação
de bando ou quadrilha por organizarem manifestações e acampamentos reivindicando reforma agrária.
Além da violação dos direitos humanos pela omissão do estado no cumprimento das
normas constitucionais acima citadas, o governo paulista vem adotando uma postura
de extrema violência, atentando contra a integridade física e a liberdade dos
trabalhadores que se aglutinam em movimentos sociais. Exemplo desta postura violenta do governo paulista está na atuação do aparelho policial do estado nas últimas ações como: a repressão aos trabalhadores que participaram da manifestação no pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que além das agressões físicas instaurou inquérito contra os trabalhadores, e a reintegração de Posse do Horto Tatu, em Limeira, que foi o despejo mais violento nos últimos 15anos no estado de São Paulo, com dezenas de trabalhadores feridos e moradias e plantações destruídas.
Outro aspecto desta violação dos direitos humanos, por parte do Estado, é o processo em curso de criminalização dos movimentos sociais, todas as manifestações políticas dos trabalhadores, por mais pacíficas que sejam, acabam culminando na instauração de inquéritos policiais e não raro em processos criminais contra lideranças dos movimentos, muitas vezes daqueles que sequer participaram das mobilizações.
A violência no campo é estrutural. Está intimamente ligada à concentração da terra.
E a reforma agrária, que seria um instrumento eficaz para democratizar o acesso à
propriedade não parece ser, de forma alguma, prioridade dos governos atuais.

III.2.3.4 - A questão ambiental
Todos deveriam ter direito a um meio-ambiente saudável. No entanto, o Estado de
São Paulo convive com a poluição do ar, da água, do solo e das pessoas.A poluição do ar por ozônio voltou a crescer em 2007 após anos em queda. Em que pese a realização de obras de ampliação da rede do metrô e o rodoanel que previne a entrada de caminhões na capital, o automóvel ainda é incentivado como o meio de transporte privilegiado. Pouco ou nenhum investimento é feito em ciclovias. Em 2007, o padrão diário foi ultrapassado 64 vezes no Estado para materiais particulados (Santa Gertrudes, Piracicaba, Ibirapuera, São Bernardo do Campo, Taboão da Serra e Cubatão) e o padrão anual foi ultrapassado em Limeira, Ribeirão Preto, Cubatão e São Bernardo do Campo. Para partículas totais em suspensão houve ultrapassagens em Cubatão, Osasco e São Bernardo do Campo. Na capital foi detectado excesso de partículas finas. Houve ultrapassagens dos padrões diários de fumaça em Santos e na Capital. O padrão de dióxido de nitrogênio foi ultrapassado na capital e o de monóxido de carbono na capital, em Taboão da Serra e em São Caetano do Sul.
Os rios e os corpos d’água subterrâneos continuam contaminados. As obras no rio
Tietê não dão conta de resolver o problema estrutural que é a não universalização
do saneamento básico. O rio Atibaia recebe dejetos industriais. Fábricas e postos de
gasolina produzem contaminação do solo, com infiltração para os lençóis freáticos.
O índice de qualidade da água para consumo público esteve péssimo em parte do ano em 7 das 22 regiões em que o Estado é dividido para estes fins e esteve ruim em 11 delas em parte do ano. A monocultura de cana consome muita água.
Consumo humano e para o pequeno produtor deve ser sempre priorizada em relação à destinação para o “hidronegócio”.
Em novembro de 2007, a CETESB divulgou seu cadastro de 2272 áreas contaminadas no Estado, além de reconhecer que muitas mais podem não ter sido ainda descobertas. Apenas 884 das áreas estão em algum estágio de remediação, sendo que boa parte delas está ainda em estudos preliminares. Apenas 94 áreas são consideradas remediadas pelo órgão oficial. Casos de fama internacional arrastam-se por anos sem solução definitiva, como os lixões clandestinos da Rhodia na baixada santista, a contaminação radioativa da nuclemon em Interlagos na capital, o aterro Mantovani na região de Campinas e o problema no condomínio Barão de Mauá no ABC.
A coleta seletiva e reciclagem do lixo ainda não é realidade na maior parte do Estado, havendo casos de despejo em lixões ou em chamados aterros-sanitários assemelhados na prática a lixões.
O uso de agrotóxicos contamina os alimentos e sobretudo os trabalhadores rurais. A
expansão da monocultura de cana vem produzindo redução da biodiversidade e as queimadas ainda não estão erradicadas no Estado.
Trabalhadores contaminados ainda não têm seus direitos reconhecidos, como se vê
no exemplo da luta dos trabalhadores contaminados pela Shell/Cyanamid/Basf em
Paulínia desde 2001 e dos mercuriados na grande São Paulo e em outras regiões,para citarmos apenas alguns exemplos.
O MAB vem se opondo à criação de hidrelétricas no Vale do Ribeira. A preservação
das matas requer sempre atenção permanente e projetos de “reflorestamento”devem ser analisados criticamente, pois muitas vezes trazem pouca biodiversidade.

III.2.5 Liberdade de crença e religião
A discriminação por motivos religiosos tem como alvo diversas minorias: afrodescendentes,budistas, judeus, muçulmanos, indígenas, ateus e agnósticos, entre
outros. O Estado brasileiro, que é constitucionalmente laico, tem o dever de garantir
a liberdade religiosa, um dos direitos fundamentais da humanidade, como afirma a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. De acordo com o artigo 5o, inciso VI, da Constituição: "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."Em relação ao combate à intolerância religiosa, percebe-se alguns avanços, como a a publicação da "Cartilha da Diversidade Religiosa e de Direitos Humanos", editada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos- SEDH. No estado de São Paulo, há iniciativas governamentais de diálogo com a participação sociedade civil, em diversos fóruns e conselhos, entre eles: o Fórum Inter-religioso por uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença e o ConPAZ – Conselho Parlamentar para a Cultura de Paz da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Além disso, destaca-se, no âmbito governamental, a criação da DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos da Intolerância, na capital, estão entre os mais importantes. Todos estes instrumentos, no então, estão ainda aquém de resolver o problema e precisam ser aprimorados e, suas ações, acompanhadas pela sociedade civil.
É conhecido o papel da mídia na difusão de estereótipos que estimulam o preconceito, o racismo e a intolerância religiosa. Há também denominações religiosas que utilizam esta ferramenta poderosa, em especial a televisão, para "demonizar" outras religiões, ateus e agnósticos. É preciso uma ação eficaz do Estado, no sentido de punir estas ações, e da sociedade civil monitorando e denunciando e tais ações.
Em termos de preconceito, as religiões de matriz africana e comunidades de terreiro,
os judeus e outros grupos convivem há longo tempo com a difusão de uma imagem
negativa pelos meios de comunicação, baseada em estereótipos e têm reagido através dos meios legais contra tal comportamento. São visitadas, rotineiramente por 150 mil brasileiros, mais de 12 mil páginas da internet, de caráter neonazista,que pregam a supremacia da “raça” branca, negando o holocausto e incitando o ódio contra judeus, homossexuais, negros e nordestinos.
A intolerância religiosa está também relacionada a manifestações racistas, tal qual
pode ser observado em ataques anti-semitas promovidos em diversas regiões do estado de São Paulo. Uma onda de pichações atingiu cinco locais do município de Várzea Paulista, com ataques aos negros, judeus, nordestinos e homossexuais; no mesmo período as cidades de Jundiaí e Campo Limpo foram alvo de agressões semelhantes. Em Santo André, supostos neonazistas picharam a Sinagoga de Santo André, no ABC Paulista, com suásticas e frases contra os judeus. Essa realidade de crimes de intolerância religiosa tem os templos judaicos, templos de religião de matriz africana e afro-brasileira como alvo.
III.2.6 - Estado laico
Estados laicos são aqueles que não necessitam da religião para fundamentar sua
legitimidade. Uma das conseqüências importantes dessa laicidade é a separação entre Estado e Igreja, que deve funcionar nos dois sentidos: tanto impedindo o Estado de limitar ou conduzir a iniciativa religiosa, como evitando que as ações do Estado sejam guiadas ou tuteladas por critérios religiosos.
Assim, "o Estado torna-se imparcial em matéria de religião, seja nos conflitos ou nas
alianças entre as crenças religiosas, seja na atuação dos não crentes. O Estado laico respeita, então, todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como a não crença religiosa. Ele não apóia nem dificulta a difusão das idéias religiosas nem das idéias contrárias à religião. (...) a moral coletiva, particularmente a que é sancionada pelas leis, deixa de ter caráter sagrado,isto é, deixa de ser tutelada pela religião, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as leis, inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos. O Estado laico não pode admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada ou vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos valores religiosos. Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que os religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade."(Observatório da laicidade do Estado, http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao3.html).

Explicações

terça-feira, 17 de junho de 2008

COMISSÃO EXTRAORDINÁRIA PERMANENTE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA, SEGURANÇA PÚBLICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

COMISSÃO EXTRAORDINÁRIA PERMANENTE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA, SEGURANÇA PÚBLICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO

PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO

COMISSÃO MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS

CONVOCAÇÃO PARA AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A CONFERÊNCIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS DA CIDADE DE SÃO PAULO

A Comissão Extraordinária Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais da Câmara Municipal e a Comissão Municipal de Direitos Humanos convoca a comunidade em geral para participar da Audiência Pública referente a Conferência Regional de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, a ser realizada às 11h30 (onze horas e trinta minutos) do dia 18 de junho de 2008, na Sala Dr. Oscar Pedroso Horta, sala B, 1º subsolo, localizado no Viaduto do Jacareí, 100. Nesta Audiência Pública, será composta a Comissão Organizadora da Conferência Regional da cidade de São Paulo, bem como será definida a data de sua realização e outros assuntos referentes à Conferencia. Ficam especialmente convidados: a Comissão Organizadora da VI Conferência Estadual de Direitos Humanos, Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Defensoria Pública, Ministérios Públicos Estadual, representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Estado e do Município de São Paulo, Associações, Sindicatos, Universidades, Organizações Não-Governamentais.


São Paulo, 13 de junho de 2008.

José Gregori

Presidente

Comissão Municipal de Direitos Humanos

Beto Custódio

Presidente

Comissão Extraordinária Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais

Câmara Municipal de São Paulo

sábado, 14 de junho de 2008

Direitos Humanos

José Damião de Lima Trindade *

A idéia de direitos “humanos”, isto é, de direitos próprios a todos os seres humanos, é relativamente recente, sob o prisma histórico. Claro, podemos garimpar pepitas filosóficas sobre direitos “naturais” de todos os seres humanos já na Grécia e na Roma antigas. Mas, naquelas sociedades baseadas em trabalho escravo e em castigo corporal, semelhantes idéias não podiam mesmo ter qualquer operância prática, figurando como esquisitices especulativas de cérebros isolados.

Segunda coisa a considerar: a construção histórica dos direitos humanos nada teve – e nada tem – a ver com suposições benevolentes, tais como “evolução espiritual” da humanidade, aumento da “consciência civilizatória”, ou o surgimento de “líderes generosos” conduzindo nações em direção à fraternidade humana. Essa construção histórica de direitos tem a ver – isto, sim – com o surgimento, em cada época, de atores sociais interessados nesses direitos, capazes de acumular forças suficientes para impô-los a outros atores sociais com interesses opostos.

Foi preciso esperar o esfacelamento do império romano, foi preciso esperar o longo florescimento e a crise longa do feudalismo ocidental, para que, já no final da fase histórica de existência desse modo de produção e de organização social na Europa, a idéia de direitos humanos “naturais” pudesse encontrar os atores sociais interessados em levá-la à prática. Esses atores, como se sabe, foram as classes sociais sulbalternas do feudalismo: o vasto campesinato servil da gleba, os artesãos e trabalhadores livres urbanos e, acima de todos, comandando-os, a burguesia. Enriquecida com o comércio local e inter-regional, com os bancos, com as grandes navegações, com o extraordinariamente lucrativo tráfico de escravos africanos, com a troca de mercadorias entre o velho e o novo mundos, com o saque colonial e até com a pirataria marítima ( principais fatores da acumulação “primitiva” de capital que veio a financiar a eclosão da Revolução Industrial), a burguesia vinha de uma longa coexistência relativamente pacífica com a nobreza e o clero – para ficarmos no caso da França, mais representativo desses processos europeus. Enquanto os camponeses eram periodicamente massacrados em suas rebeliões por direitos elementares, a burguesia emprestava dinheiro a juros a barões e bispos, principais senhores feudais, e a príncipes e reis endividados pelas guerras intermináveis entre as cabeças coroadas da Europa.

Mas chegou um momento em que as amarras econômicas e políticas do feudalismo passaram a incomodar a florescente burguesia. Um exemplo: eram tantos os impostos de passagem entre os feudos, que encareciam o comércio de mercadorias entre distâncias maiores dentro da própria Europa. Outro exemplo: o burguês que prosperou em sua oficina de manufatura e pretendesse contratar mais empregados, teria de se conformar com uma produção modesta (entenda-se: com lucros modestos), pois os camponeses, conquanto muito numerosos, eram servos da gleba, sem liberdade pessoal de ir e vir, e muito menos de se alugarem a patrões nas cidades. Ademais, sendo de mera subsistência a economia interna de cada feudo, com pouquíssimos excedentes para troca, ela impedia a massificação de um mercado consumidor capaz de absorver e permitir a expansão da incipiente produção capitalista urbana. Para mudar tudo isso, seria preciso superar as relações econômicas feudais, mudar as leis, obter o poder político. Mas o poder político era privilégio da nobreza e do clero – quando não apenas do rei absolutista. Fechava-se o círculo. Para ganhar mais dinheiro, a burguesia precisaria implodir o feudalismo e seu sistema de direito desigual.

Detenhamo-nos um pouco neste ponto: estamos hoje tão habituados com a idéia de igualdade jurídico-formal de todos perante a lei, que é difícil imaginarmos uma sociedade em que o direito positivo fosse diferente para classes sociais diferentes. Pois era assim no feudalismo. Tomemos as Ordenações Filipinas, estatuto português do feudalismo tardio, que vigorou no Brasil até 1830. Veja-se seu Livro V, título 38 (“Do que matou sua mulher por a achar em adultério”): “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade”. Ou então, o título 80 do mesmo Livro (“Das armas que são defesas e quando se devem perder”), item número 13: “Defendemos outrossim que pessoa alguma, em todos os nossos reinos e senhorios, não traga, de dia nem de noite, nem tenha em sua casa, arcabuzes de menos comprimento que de quatro palmos em cano; e sendo peão o que o trouxer, seja açoitado e degredado para sempre para as galés. E, sendo pessoa de maior qualidade, seja degredado para o Brasil para sempre[1].

Por volta dos séculos XVII e XVIII, a burguesia européia dava-se conta de que, para maior prosperidade, precisava de... liberdade e igualdade. Entenda-se bem: liberdade de comércio, liberdade empresarial, liberdade para contratar força de trabalho, em suma, liberdade para lucrar. Nenhuma cogitação de libertar escravos, ou de libertar as mulheres da opressão doméstica, ou de liberdade aos povos das colônias. O máximo de liberdade “alheia” que conviria à burguesia seria o fim da servidão dos camponeses à gleba feudal, para que, assim tornados “sujeitos de direito”, pudessem “livremente” alugar seu corpo e sua alma, em condições de perfeita “igualdade contratual”, aos empreendedores urbanos. E a igualdade ? Bastaria a igualdade perante a lei, isto é, igualdade formal perante a nobreza e o clero, fim dos privilégios políticos ou econômicos de nascimento. Nenhuma cogitação de colocar um ponto final nas desigualdades econômicas e sociais concretamente existentes, em rápida expansão durante a primeira Revolução Industrial. Surgia o tríptico lema revolucionário: liberdade, igualdade e, para emoção maior, também fraternidade !

Foi assim que as milenares idéias do direito “natural”, atualizadas pelo Iluminismo, finalmente saltaram dos textos filosóficos para a sociedade. A burguesia, que jamais se importara com direitos de quem quer que seja, precisava de um arcabouço ideológico atraente para se apresentar à população e, assim, liderar milhões de camponeses e artesãos urbanos na luta sangrenta que desencadeou contra aristocratas e padres. Serviu-se do jusnaturalismo, particularmente do jusnaturalismo de base racional, para seus propósitos revolucionários na França – fez o mesmo por toda parte, malgrado variações locais de intensidade ou de “ilustração”.

Tomando o poder pela insurreição armada, a burguesia logo tratou de editar seu panfleto revolucionário: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1789. O “homem” do título, não era referência ao gênero humano, mas apenas ao sexo masculino, e era tomado de modo perfeitamente abstrato, sem qualquer consideração quanto ao modo real de sua existência, à sua inserção em classes.

Os quatro “direitos naturais” enunciados no artigo 2° daquela Declaração (liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão) foram contemplados desigualmente. A liberdade recebeu sete artigos: dois definem seus contornos gerais, três tratam da liberdade individual, um se refere à liberdade de opinião, e outro à liberdade de expressão. A propriedade só foi abordada no artigo 17, mas beneficiou-se de um tratamento enfaticamente protecionista – foi o único direito qualificado como “inviolável e sagrado”. A segurança só foi contemplada no artigo 12, e de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de resistência à opressão, a Declaração nada lhe dedicou, a não ser a menção inicial. Há uma ausência memorável: a igualdade não figurou entre os direitos “naturais e imprescindíveis” proclamados no artigo 2º, muito menos foi elevada ao patamar de “sagrada e inviolável”, como fizeram com a propriedade. Além disso, quando mencionada depois, o foi com um este sentido: os homens são iguais – mas “em direitos” (artigo 1°-), perante a lei (artigo 6°-) e perante o fisco (artigo 13). Ou seja: a igualdade de que cuida a Declaração é a igualdade civil (fim da distinção jurídica baseada no status de nascimento). Nenhum propósito de estendê-la ao terreno social ou político.

Houve outros silêncios eloqüentes sobre várias das dimensões da igualdade evitadas pelos constituintes franceses: o sufrágio universal sequer foi mencionado, a igualdade entre sexos não chegou a ser cogitada, o colonialismo francês (ou europeu em geral) não foi criticado, a escravidão não foi vituperada (e era uma realidade dramática naquele tempo), o direito ao trabalho foi esquecido etc.. Assim, tão importantes quanto as idéias que a Declaração contém são as idéias que ela não contém – e que, a julgar pela acumulação filosófica já existente no final do século XVIII, a “Razão” esperaria que fossem acolhidas nesse texto. Os deputados constituintes reproduziram no início da Declaração, de modo abstrato, princípios do jusnaturalismo que gozavam de grande prestígio (liberdade, igualdade), mas, em seguida, ao “traduzirem-nos” nos demais artigos, promoveram uma seleção cuidadosa de temas, sentidos e ênfases – seleção guiada, evidentemente, pelo filtro de seus interesses e conveniências de classe. Por mais que tivessem bebido nas fontes filosóficas iluministas dos “direitos naturais e universais”, seria excessivo esperar que esses burgueses legisladores se mostrassem dispostos, de motu proprio, a pavimentar uma estrada jurídica que apontasse para alguma espécie mais real de igualdade social. Albert Soboul bem anotou: “As contradições que marcaram sua obra explicam o realismo dos Constituintes, que pouco se embaraçavam com princípios quando se tratava de defender seus interesses de classe ”[2].

A história da Revolução Francesa é tão apaixonante quanto didática em mostrar que, conforme predominava no processo revolucionário uma ou outra classe social, ou fração de classe, ou aliança de classes, o direito imediatamente produzido variava conforme os interesses da força social ou do bloco de forças dominante em cada momento. Por falta de espaço, tenho de resistir à tentação de prosseguir neste assunto. Apenas registro que, após três Constituições produzidas no período revolucionário (1791, 1793 e 1795), cada uma delas correspondendo a uma correlação social de forças diferente, o saldo foi este: liberdade individual, igualdade civil (jurídico-formal), remoção dos resquícios do feudalismo para liberar completamente o desenvolvimento das relações sociais capitalistas, a propriedade privada alçada ao patamar de direito absoluto e as novas instituições moldando uma república oligárquica fundada no voto “censitário” (os direitos de votar e ser votado circunscritos apenas aos cidadãos “ativos”, isto é, que ultrapassassem certo patamar de propriedade ou renda). Nada restou sobre direitos sociais do povo, muito menos sobre sobre o direito ao/do trabalho. Corrijo-me: houve, sim, uma lei “trabalhista”, a lei Le Chapelier. Indignada com sucessivas greves reivindicatórias, a burguesia fêz aprovar na Assembléia Constituinte, em 14 de junho de 1.791, essa lei que levou o nome de seu relator, proibindo qualquer associação operária com vistas a recusar trabalho ou a exigir salários melhores. A lei Le Chapelier teria vida longa, só foi revogada em 1887, e serviu de modelo ao redor do planeta para a criminalização de grevistas e sindicalistas.

Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815 perante os exércitos da coligação antifrancesa, iniciavam-se quinze opressivos anos em que, tendo sido restauradas monarquias extremamente reacionárias por toda a Europa continental, foram abolidos quase todos os vestígios de liberdade – exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento e de lucro. Foi o período conhecido como “Restauração”, marcado pela caça sistemática aos militantes revolucionários, a imprensa colocada sob rígida censura, os reis e o Papa empenhados num esforço feroz para expurgar do ambiente cultural europeu aquelas “perigosas” idéias de liberdade e igualdade. Mas isso não significou o retorno ao ancien régime anterior a 1789: as relações econômicas capitalistas já estavam perfeitamente consolidadas e, politicamente, a grande burguesia francesa (assim como a do restante da Europa) não teve maior dificuldade em acomodar-se a um regime que não interferiu na acumulação de capital.

Ao mesmo tempo, a Revolução Industrial, que transbordava rapidamente pela Europa continental, encarregou-se de completar a desgraça dos trabalhadores: expropriação em massa de camponeses, migração forçada para as cidades, trabalho assalariado em condições infames, jornadas de trabalho de até 18 horas, salários vis, para não falar da expansão explosiva de legiões de desempregados sobrevivendo à beira da fome. Como a produtividade das fábricas mecanizadas trazidas pela Revolução Industrial era muito maior do que a das anteriores manufaturas, elas não tinham necessidade de absorver toda a imensa força de trabalho que fora “liberada”, seja pela expulsão dos camponeses das áreas rurais, seja pela ruína dos remanescentes urbanos do antigo artesanato individual. Em conseqüência disso, milhões de trabalhadores vieram a compor o que seria chamado de “exército industrial de reserva”: multidões de desempregados que nos momentos de expansão da economia retornam ao assalariato, para serem remetidos novamente à “reserva” ao primeiro sinal de retração econômica. Como essa “reserva” humana nunca se esgotasse, ela logo passou a desempenhar a função econômica de manter baixos os salários dos que estivessem empregados.

Claro: os ideólogos do liberalismo logo justificaram como “natural” a desigualdade social. O principal deles, Adam Smith, morto no final do século XVIII, havia publicado a obra que se tornou a “bíblia” do capitalismo – “A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas” – na qual colocou num altar o egoísmo e a competitividade entre os indivíduos, aconselhando que, para a prosperidade das “nações”, os governos deviam deixar completamente livre a mão invisível do mercado. Eis o que outro humanitarista liberal, o senhor Patrick Colquhoun, escreveu em 1806, em seu A treatise on indigence: “Sem uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que os ricos são produto do trabalho, ao passo que o trabalho pode resultar somente de um estado de pobreza...

A pobreza, portanto, é um ingrediente indispensável e por demais necessário da sociedade, sem o qual as nações e comunidades não poderiam existir num estado de civilização”[3].

Os efeitos combinados da Restauração política e da Revolução Industrial instauraram na Europa, ao longo da primeira metade do século XIX, o que pode ser chamado de uma primeira grande crise dos direitos humanos, desde que haviam sido formulados pelos filósofos racionalistas do século XVIII. Ela se configurava de duas maneiras: como estagnação e como agravamento. Era como estagnação no plano político, devido à resistência, tanto da reação monárquica como dos liberais, em estender os direitos políticos aos trabalhadores. E era como agravamento no plano econômico-social, pois, além da convergência dessas duas forças no propósito de manter a igualdade em estado de raquitismo jurídico-formal (recusa em ampliá-la ao campo social), a Revolução Industrial havia também piorado dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores.

Até medidas instituídas com o propósito exterior de “aliviar” os tormentos dos desvalidos muitas vezes terminavam por agravá-los de outras formas: “O liberalismo econômico se propôs a solucionar o problema dos trabalhadores de sua maneira usual, brusca e impiedosa, forçando-os a encontrar trabalho a um salário vil ou a emigrar. A Nova Lei dos Pobres de 1814, um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro das novas workhouses (onde tinham que se separar da mulher e dos filhos para desestimular o hábito sentimental e não malthusiano de procriação impensada) e retirou a garantia paroquial de uma manutenção mínima”[4]. Nessas ocasiões em que a miséria batesse à porta, nem sequer vestígios de cidadania se preservariam: “... os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de direitos políticos que possuíssem. Essa incapacidade permaneceu em existência até 1918”[5]. Outra lei “trabalhista” foi o Código Britânico de Patrões e Empregados, editado em 1823: chegava a punir os trabalhadores com pena de prisão, caso rompessem o contrato de trabalho – e, pela mesma transgressão, impunha aos empregadores multas discretas.

No plano filosófico, começava a ocorrer um deslocamento fundamental: a burguesia passava-se de armas e bagagem para o positivismo. O jusnaturalismo anterior servira a seus propósitos revolucionários, mas, uma vez consolidado o capitalismo, o positivismo passava a ser-lhe mais “adequado”, na medida em que batia-se por uma neutralidade axiológica – completa abstenção de juízos de valor – na análise da sociedade, que deve ser tomada apenas como “objeto” de observação, exatamente como faz um geólogo ao examinar um pedregulho. Essa demanda de neutralidade axiológica conduziria os juristas positivistas a circunscreverem seu estudo à investigação metódica do direito positivo, a suas normas e à forma prescrita pelo próprio ordenamento jurídico para sua produção/modificação – sempre sem manifestação de juízos de valor. A norma jurídica, portanto, também se converte em “objeto de observação”, ao qual o jurista deve se debruçar sem “admiração ou crítica”. A tarefa do jurista “científico” consistiria em explicar – pelas regras da própria lógica jurídica – e aplicar o Direito existente, sem indagações “extrajurídicas” quanto à sua legitimidade social. Iniciava-se, a partir daí, um duradouro divórcio entre Direito e Moral.

Nesse ambiente sombrio, surgiu uma novidade: os trabalhadores começaram, politicamente, a andar com as próprias pernas. Associações operárias, mesmo duramente reprimidas por toda parte, começaram a se organizar também por toda parte. A greve, mesmo ilegal em todo o planeta, acabava acontecendo como instrumento de autodefesa operária. A indignação com a desigualdade social brutal expressou-se também no plano ideológico durante a primeira metade do século XIX, inicialmente por meio dos questionamentos dos chamados socialistas utópicos ou românticos – dentre outros, Saint-Simon e Fourier, na França, e Owen, na Inglaterra. A idéia, em síntese, era esta: criar comunidades igualitárias e autogeridas de trabalhadores que, pela força do exemplo e por sua superioridade moral, terminariam por “seduzir” toda a sociedade circundante. Chegaram a criar colônias desse tipo até nos EUA e no Brasil. Essa convicção generosa e ingênua não os deixou perceber que a lógica do capital é apenas a busca de lucros, sem se abalar minimamente por princípios morais ou racionais. Aquelas ilhotas de comunismo, cercadas de capitalismo por todos os lados, fracassaram, claro. Mas estava inaugurada a crítica moral sistemática ao modo de organização social fundado na desigualdade de classes, antes esboçada apenas literariamente ou tratada marginalmente por raros pensadores.

Logo depois, em meados daquele século, surgiria a crítica muito concreta de Karl Marx, que se valeu dos recursos da investigação científica. Fazendo uma dissecação minuciosa e exaustiva do capitalismo, Marx demonstrou que era o trabalho que criava sobrevalor econômico, e não o capital, nem a lei da oferta e procura. Se o modo de enriquecer no capitalismo era contratar empregados na produção, isso ocorria porque os capitalistas exploravam os trabalhadores. Antes dele, um economista inglês devotadamente liberal, David Ricardo, na sua famosa obra “Princípios de Economia Política e Tributação” (1817) já havia, muito a contragosto, intuido isso. “Se, como argumentava a economia política, o trabalho representava a fonte de todo o valor, então por que a maior parte de seus produtores vivia à beira da privação? Porque, como demonstrava Ricardo – embora ele se sentisse constrangido em relação às conclusões de sua teoria – o capitalista se apropriava, em forma de lucro, do excedente que o trabalhador produzia além daquilo que ele recebia de volta sob a forma de salário. (...) De fato, o capitalista explorava o trabalhador”[6]. Ultrapassando essa percepção quase de senso comum, Marx fez sua demonstração. E concluiu, de modo muito objetivo, que, entre patrões e empregados, os interesses de fundo são contraditórios. Uma sociedade baseada na divisão dos seres humanos entre patrões e empregados é, inevitavelmente, uma sociedade baseada na luta de classes – luta às vezes velada, meramente reivindicativa, outras vezes cruenta. A classe economicamente dominante detém o poder político e faz as leis para assegurar seu domínio de classe. A única possibilidade de “reforma” social está em os dominados obterem o poder político para reconstruírem as relações humanas com base na igualdade, sem exploradores nem explorados, resultando numa sociedade nova baseada nesta máxima: “De cada um, segundo suas possibilidade; a cada um, segundo suas necessidades”. Nunca mais o homem sendo lobo do homem. E enquanto essa luta de classes se desenvolve, a “neutralidade” é impossível ou cínica.

Portanto, rompendo com as idealizações fantasiosas e voluntaristas dos socialistas utópicos, Marx apontou para um programa propriamente político aos trabalhadores: a transformação da sociedade, a superação do capitalismo. Ao final do século XIX, as formulações de Marx já ganhavam terreno na disputa com correntes anarquistas, reformistas ou remanescentes do socialismo utópico, cumprindo para movimento operário, ao menos na Europa e na América do Norte, uma função similar à que, um século antes, o jusnaturalismo desempenhara em relação à burguesia revolucionária: método de compreensão e crítica da sociedade e instrumento teórico para sua transformação – sob o ponto de vista dos explorados e oprimidos.

Também ao final do século XIX, as lutas operárias na Europa e América do Norte se ampliavam consideravelmente, malgrado a truculenta resistência patronal-governamental, e os trabalhadores começavam a obter suas primeiras vitórias. No plano dos direitos civis e políticos, sua luta-símbolo era pelo sufrágio universal, contra o voto censitário, modelo praticado em todas as “democracias” oligárquicas de então. No plano do que hoje chamamos de direitos econômicos, sociais e culturais – indispensáveis a uma sobrevivência com dignidade – as lutas-símbolos eram: melhoria salarial, jornada de trabalho de oito horas (“um terço do dia para o trabalho, um terço para o repouso, um terço para a vivência pessoal e familiar”), assistência à saúde, amparo público na velhice e mesmas oportunidades educacionais para todos. Pensando bem, um programa ainda muito atual. A Alemanha, com sua aguerrida classe operária, foi o primeiro país, sob Bismarck, a instituir algo semelhante a uma tímida previdência social. A luta pela jornada de oito horas ganhou formidável impulso mundial após o episódio dos “oito mártires de Chicago” em 1886.

No século século XX, a reivindicação trabalhista se dissemina e abre brechas na muralha de resistência. Em 1910, iniciou-se o longo e muito violento processo da revolução mexicana, primeira revolução popular a triunfar (e a ser traída...) nos tempos modernos. Em seu auge, após derrubar do poder a velha oligarquia agrário-exportadora, a revolução produziu a Constituição Mexicana de janeiro de 1917, documento jurídico mais avançado socialmente que até então se conhecera: sufrágio universal para homens e mulheres, educação pública laica e gratuita, supremacia do interesse público, reforma agrária, função social da propriedade, liberdade sindical e um imenso e minucioso rol de direitos sociais no longuíssimo artigo 123 da Constituição. A partir dali, podia-se falar de um Direito do Trabalho em fase de sistematização. Mas, como se sabe, aquela bela Constituição mal saiu do papel. As forças conservadoras da burguesia local controlaram o impulso revolucionário popular, e tornaram o dito em não-dito. Contudo, a simples existência daquela Constituição, por fugaz ou esvaziada que tenha sido, criou um precedente e um paradigma importantísssimos para as lutas sociais subseqüentes.

Mas quem, à época, ainda acreditasse poder manter o planeta imóvel, teria, e muito depressa, uma nova e enorme dor de cabeça: apenas dez meses após a Constituição mexicana vir à luz, triunfava a revolução socialista na Rússia, em outubro daquele ano (novembro, pelo calendário atual). Logo em seguida, em 4 de janeiro de 1918, o Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, assembléia decisória que, naquele momento, encarnava o novo poder, proclamou a um mundo atônito a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”. Essa Declaração inaugurou uma ótica completamente nova na abordagem tradicional dos direitos humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato contida na Declaração francesa de 1789, a Declaração russa de 1918 elegia como ponto de partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente) existente, o ser humano que vive em sociedade, em relação contínua com outros homens, e que, portanto, poderá desenvolver (ou não desenvolver) suas potencialidades humanas conforme a posição que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo de organização dessa sociedade venha a favorecer ou a dificultar esse desenvolvimento. Em vez da sociedade hipoteticamente uniforme (isto é, somente juridicamente igualitária), dissolvida idealmente em cidadãos supostamente iguais, a Declaração russa partia do reconhecimento – cautelosamente evitado desde 1789 – de que a sociedade capitalista está mesmo cindida em classes sociais com interesses conflitantes ou irremediavelmente antagônicos. Portanto, em vez da ideação liberal de “neutralidade” social do Estado, a nova Declaração tomava partido, desde logo e abertamente, dos explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder econômico e político os exploradores. Essa Declaração foi, em seguida, incorporada, como Título I, na primeira Constituição socialista russa, de julho de 1918.

Logo em seguida, a Alemanha, cuja classe dominante ficara atônita face a uma tentativa insurreicional operária no final de 1918 (esmagada num banho de sangue), produziu, em agosto de 1919, a Constituição de Weimar, pela qual foram estendidos direitos civis e políticos aos operários e acatados muitos dos seus direitos econômicos, sociais e culturais – destacadamente, muitos direitos trabalhistas.

A partir de então, mobilizações operárias cada vez mais atrevidas no velho e no novo mundos[7], freqüentemente com ardorosa simpatia pela Revolução Russa, fizeram soar o alarme: a burguesia dos países mais adiantados dava-se conta de que precisava entregar os anéis para não perder os dedos. O “reconhecimento” de direitos para os trabalhadores passou, ainda que timidamente, a ter curso progressivo de país para país, dando início à transição do Estado Liberal para o Estado Social. E nem importava a forma política assumida pelos Estados, se fascismo ou democracia – a Constituição fascista italiana, em meados da década de vinte, ao mesmo tempo em que amordaçava o movimento operário, amortecia seu ânimo de combate mediante a outorga de direitos trabalhistas muito concretos. Até a recém-criada Liga das Nações promoveu a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, instituição que, ao contrário da insossa Liga, sobreviveria às intempéries do resto do século e desempenharia papel certamente mais relevante do que imaginaram seus criadores.

Após a grande crise mundial do capitalismo irrompida em 1929, essa tendência se afirma, ainda mais com o advento da muito progressista Constituição Republicana espanhola de 1931, produzida sob a pressão de um ativo movimento operário-camponês de matrizes anarquista e comunista. Direitos trabalhistas e previdenciários, preocupações com educação e saúde públicas, bem como certas cautelas referentes à assistência social, passaram então a figurar (muitas vezes, não passava mesmo de “figuração”) em inúmeras outras Constituições ou textos legais (inclusive na Constituição outorgada por Vargas em 1934), ou a ganhar existência por meio de mecanismos extra-legais de conciliação de classes (caso dos EUA). Muito a contragosto, emergia o reconhecimento, antes hipocritamente negado pelos pensadores liberais, de que o trabalhador é mesmo a parte fraca na relação contratual de trabalho e que, para evitar que marche à rebelião social, precisa receber certa “proteção” – entre nós, essa proteção chegou em 1942, com a CLT. Foi, portanto, nesse contexto de exorcizar a sedução do socialismo pela classe operária que foi sistematizado o Direito do Trabalho no Ocidente, tal como entendido hodiernamente.

Terminada a 2ª Guerra Mundial, tudo se precipita: consolidação da União Soviética como potência econômica e militar, surgimento do “campo” socialista (Europa Oriental e China), fortalecimento dos sindicatos (mais na Europa, América do Norte e Japão), proliferação de partidos trabalhistas, socialistas e comunistas em todo o mundo, acirramento das insurreições de libertação nacional contra o colonialismo europeu na África e Ásia, apoiadas diretamente pela União Soviética, instauração da duradoura “Guerra Fria”. Nessa conjuntura em que a correlação mundial de forças obrigava o capitalismo a recuos importantes, não havia mais condições de retardar o reconhecimento formal dos direitos “humanos” dos trabalhadores. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral da recém-criada ONU, foi o resultado de uma negociação política entre os representantes dos países capitalistas e socialistas, encetando uma tentativa de conciliação entre as concepções liberal e socialista: reafirmou os direitos civis e políticos desenvolvidos a partir da Declaração liberal francesa de 1789 e incorporou os direitos econômicos, sociais e culturais das reivindicações trabalhistas desde o século XIX, enunciados pela Constituição mexicana de 1917 e pela Declaração socialista russa de 1918. Uma conciliação tensa e nunca resolvida de modo satisfatório – boa parte dos direitos econômicos, sociais e culturais ainda hoje não conseguiu escapar da compreensão jurídica conservadora que os relega ao papel de meramente “programáticos”.

Seja como for, desde esse último pós-guerra, o Direito do Trabalho floresceu vigorosamente como instrumento de “harmonia social” nos países capitalistas. E, malgrado nas primeiras décadas do século XX as classes dominantes não pretendessem que fosse mais que uma almofada na luta de classes, é inegável que, onde conseguiu verdadeiramente saltar dos textos legais para a realidade social, o Direito do Trabalho passou a desempenhar relevante papel civilizatório, socialmente progressista – seja por tornar menos penosa a exploração do capital sobre a parcela das massas que a ele teve acesso (caso dos países da periferia do capitalismo), seja por alçar a população de outros países a padrões de vida realmente dignos (caso da Europa, com mais razão na porção escandinava). Esse movimento foi persistente até o final da década de 1970, configurando os trinta anos mais mais frutíferos do Direito do Trabalho.

De lá para cá, inflexão. Os ideólogos da direita liberal do “primeiro” mundo, mirando-se nos exemplos dos governos socialmente regressivos e repressivos de Tatcher, no Reino Unido (1979-1990), e Reagan, nos EUA (1980-1988), resgataram a cartilha econômica e social do velho liberalismo, preservada rancorosamente contra Marx e até contra o “intervencionista” Keynes pelos discípulos modernos de Adam Smith, como Hayeck e Friedman. Eis as máximas dessa cartilha: liberdade para a mão invisível do mercado, fora com o Estado produtor ou regulador, abaixo as regulamentações “artificiais” que sufocam a livre empresa e a livre competição, volta ao “livre” contratualismo nas relações de trabalho, nada de protecionismo social, nada de protecionismo nacional na produção ou no comércio, as portas de cada país devem ser completamente escancaradas para a entrada de mercadorias estrangeiras (não importa quantos empregos sejam suprimidos), os capitais devem ter inteira liberdade de ir e vir entre os países (as pessoas, não, a menos que sejam detentoras de capitais). Acima de tudo, o Estado deve ser “mínimo”, deve privatizar tudo o que for de “interesse” da iniciativa privada (o que for lucrativo) e recuar quase somente às suas funções “clássicas” oitocentistas, como legislar, policiar, julgar, punir, oferecer “garantia jurídica” aos negócios e proteção à propriedade privada – no máximo, realizar certas obras de “retorno” econômico muito demorado, cujo investimento não atraia a iniciativa privada, mas privatizando-as tão logo prontas. Essa cartilha foi a ideologia apropriada à nova etapa do capitalismo internacional desde o final do século XX: o acirramento da tendência à internacionalização do mercado capitalista, velha como o capitalismo (agora, apelidada de “globalização”) e o aguçamento mundial da competição inter-capitalista, impunham a necessidade de o capital monopolizado ascender a novos patamares de acumulação e reprodução ampliada, recuperando o terreno que perdera para os trabalhadores nas décadas anteriores. Essa “globalização” tornou-se viável pela conexão das telecomunicação com a informática – desde a década de 1990, com a instantaneidade fulminante de um toque de teclado, bilhões de dólares cruzam e descruzam oceanos e continentes. O capital “financeiro”, resultado da fusão operada ao longo do século XX entre o capital industrial e o capital bancário, pode, finalmente, como nuvem de gafanhotos, ficar dando voltas ao planeta à busca de rendimento especulativo, quebrando países, gerando desespero social, não importa, o que importa são lucros !

A agenda neoliberal adotada pelo FMI, BIRD, BID, OMC e outras agências internacionais sob controle dos países capitalistas centrais foi “atualizada” para a América Latina em novembro de 1989, pelo “Consenso” de Washington. O neoliberalismo logo proclamou-se a si mesmo como o pensamento final da História, portanto “único” remanescente. E encontrou a paisagem quase inteiramente livre de obstáculos para agir, pois seu nascimento coincidiu com a grande inversão da correlação mundial de forças, no início da década de 90, que se completava com o desmoronamento do bloco socialista da Europa Oriental, seguido de restauração do capitalismo naqueles países.

Aliviadas, sentindo-se de mãos novamente livres, as classes dominantes em todo o planeta trataram logo de ensaiar passos retomar o que, por força de pressão operária ou por medo da revolução social, haviam cedido nos setenta anos anteriores. O movimento de redução da desigualdade social que, malgrado desuniforme no espaço e descontínuo no tempo, vinha progredindo em várias partes do mundo entre as décadas de 30 e 70 do século passado, mesmo fora do “campo” socialista, foi abruptamente detido na entrada dos anos 90. Salvo exceções muito localizadas, desde então a desigualdade e a pobreza, muitas vezes degradantes, mantiveram-se no mesmo patamar em algumas regiões, tendem a ampliar-se em outras e, em outras ainda, aprofundam-se dramaticamente. Reanima-se, em todo o mundo, a contradição entre uma “igualdade” meramente jurídica, reservada aos de baixo, e a liberdade econômica (esta, real) das elites.

Levado de roldão, o Direito do Trabalho paralisa-se ou recua por toda parte – porque, por toda parte, esse é o movimento atualmente experimentado pelas relações de trabalho. Do Brasil, nem precisamos falar, está tudo em nossas memórias recentes. Mas lá fora ocorre o mesmo – aliás, porque tudo começou mesmo lá fora. Meros exemplos: em junho de 2004, o sindicato dos trabalhadores em telefonia da Alemanha “celebrou” um acordo coletivo de trabalho com a empresa Siemens, ampliando a jornada de trabalho de 35 para 40 horas semanais, sem o correspondente acréscimo remuneratório, e pondo um fim aos abonos natalino e de férias, como modo de evitar que uma fábrica de 2000 empregados se transferisse para a Hungria. Um pouco antes, os trabalhadores metalúrgicos desse país haviam sido forçados, para postergar o desemprego, a aceitar mais horas extras, sem remuneração adicional. Logo em seguida, as entidades patronais do país propuseram a introdução da jornada de 50 horas semanais, “para evitar a transferência de empregos ao exterior”, ao mesmo tempo em que a Confederação do Comércio defendia a redução das férias anuais, dos atuais 29 dias, para uma semana. Na Áustria, Holanda, Dinamarca e Bélgica, esse “exemplo” alemão passou imediatamente a ser brandido aos sindicatos em todas as negociações. Quanto às férias anuais remuneradas, a pressão patronal-governamental européia é por seu encolhimento, e mira-se nos exemplos do Japão, onde, na média já baixou para 18 dias anuais, e dos EUA, de apenas 12 dias anuais. Na França, cresce a pressão empresarial para estender a jornada de trabalho dos empregados que, no ano 2000, havia sido reduzida para 35 horas. No Reino Unido, mais de um quinto dos empregados já trabalha acima do limite aceito pela União Européia, que é de 48 horas por semana. Em agosto de 2004, em seu Relatório anual sobre a Europa, o FMI concitou a União Européia a “estimular o aumento do total anual de horas trabalhadas nos 12 paíse que usam o euro”. O FMI também tem insistentemente “aconselhado” a União Européia a cortar os “gastos” com seguro-desemprego, aposentadorias e pensões públicas. Por aí, vai. Se houvesse muito espaço disponível, caberia aqui um rol soturno, muito mais longo, desses reveses interminados.

Já surgem, inclusive, desde há algum tempo, os “teóricos” da subserviência social a proclamar a “morte” do Direito do Trabalho, sua “desnecessidade”, o retorno necessário ao contratualismo “puro” e “livre” entre empregados e empregadores. O Direito do Trabalho, com sua regulação “excessiva”, seria um “estorvo”, uma “excrescência paternalista”. Morte ao poder normativo da Justiça do Trabalho, morte a toda legislação protecionista, que prevaleça o “negociado” sobre o “legislado” e que se devolva aos indivíduos a “liberdade” para buscar seu próprio lugar ao sol, sem FGTS, sem seguro-desemprego, sem previdência pública, pois os “encargos” sociais encarecem a produção, diminuem a competitividade e estimulam a informalidade... No Congresso Nacional brasileiro, há dezenas de proposituras com esse norte.

Nessa guerra pelo regresso social, não falta sequer, como arma ideológica, o recurso ao preconceito quimicamente puro: o Direito do Trabalho seria um ramo jurídico “secundário” ou “inferior” na frondosa árvore do Direito, seria desprovido de natureza “científica”, a Justiça laboral não compartilharia da “nobreza” da Justiça (curiosa essa recorrente nostalgia aristocrática no Direito...), bastaria o Direito Civil, verdadeiro fiador de relações humanas “naturais”. Sussurra-se, não se ousa dizer claramente, mas é isso o que se diz.

Pois foi nesse cenário de pesadelo que Domenico Di Masi, sociólogo italiano do trabalho, propôs, no ano 2000, o conceito de “ócio criativo”, um conjunto de atividades prazeirosas de livre escolha individual, que poderiam substituir o tempo dedicado ao trabalho economicamente produtivo, pois este, a começar pelos países desenvolvidos, já estaria em marcha rápida para ser “abolido” pela acelerada introdução de inovações tecnológicas no processo produtivo, que “liberariam” o ser humano da necessidade de trabalhar ou, ao menos, de trabalhar tanto. Recentemente, Di Masi chegou até a estimar que o estágio atual da tecnologia aplicada à produção já permitiria que todos os seres humanos trabalhassem apenas 3 horas por dia, 5 dias da semana, sem que recuasse a oferta de bens necessários à vida.

Mas fica a indagação incômoda: isso seria possível em qual tipo de sociedade humana ? Nesta sociedade, em que o aumento veloz da produtividade da força de trabalho, gerado pelo progresso tecnológico apropriado privadamente, acarreta, em vez da redução generalizada da jornada, a dispensa de milhões de trabalhadores de osso e carne ? Nesta sociedade, se não interrompermos essa marcha em direção à insensatez e ao colapso, o antigo “exército industrial de reserva” terminará englobando, muito em breve, a maioria dos humanos, apontando, no limite, para esta estúpida e paradoxal situação: de um lado, praticamente toda a produção massiva sendo realizada por máquinas desenvolvidíssimas, quase auto-operadas, sob mera supervisão de decrescente grupo de controladores; mas, de outro lado, a maioria da humanidade desempregada, vegetando no limite mais abjeto de sobrevivência, sem qualquer poder aquisitivo para adquirir as mercadorias produzidas pelas máquinas maravilhosas. As máquinas de propriedade privada se deteriam ante o “esgotamento” planetário do mercado consumidor, enquanto às multidões marginalizadas só restaria se comportar como na metáfora de Marx: a natureza nos ensina o que acontece quando há dois cães e um só osso.

Até meados do século XX, os economistas do liberalismo ainda riam desse tipo de prognóstico do capitalismo, que desqualificavam como “catastrofista”, sustentando que os empregos que a tecnologia suprimisse da atividade produtora de mercadorias seriam “compensados” por novos postos de trabalho abertos no comércio e no setor de serviços. Imaginavam, por suposição, que os capitalistas “renunciariam” à introdução nesses setores de tecnologia substituidora da força de trabalho humana. Outros economistas liberais sustentavam que, como o capitalismo cria continuamente novas “necessidades” humanas, por mais artificiais, supérfluas ou frívolas que sejam (como mascar chicletes ou seguir modas), sua satisfação demandaria sempre a contratação de novos trabalhadores – como se também a produção da frivolidade estivesse imune à tecnologia, ou como se, nesta sociedade de desigualdade crescente, todos pudessem, ilimitadamente, ter acesso ao frívolo.

A dourada possibilidade aritmética de Domenico Di Masi só seria possível numa sociedade sem desigualdades econômicas importantes entre as pessoas, em que a ciência e a tecnologia criadas pelo talento da humanidade pudessem ser apropriadas pelo conjunto da sociedade, aumentando, sim, ininterruptamente, a produtividade da força de trabalho – mas com o propósito consciente, socialmente planejado, não de gerar mais lucros, mas de reduzir progressivamente a jornada de todos. Seria, digamos assim, para ficarmos em nosso tema, um modo de superar a crise capitalista do Direito do Trabalho mediante a universalização do direito ao trabalho, um trabalho cada vez menos penoso e menos extenuante para todos.

Passa da hora de concluir estas reflexões. Retomo a indagação que a elas deu título: terá o Direito do Trabalho chegado a seu esgotamento histórico? Desculpem-me a falta de originalidade, mas isto dependerá novamente de como evoluirá a...correlação social de forças, na qual estamos todos inseridos e com a qual, se estivermos dispostos a tomar partido, podemos, sim, interagir criticamente. O futuro não está de antemão traçado, podemos escolher entre sermos agentes socialmente influentes ou inermes. Mesmo se recearmos retomar as grandes narrativas construtoras-reconstrutoras da solidariedade social, ainda podemos ficar com algo muito palpável, este onipresente argumento inevitável: a necessidade de determos o desmoronamento em direção à barbárie social que, não nos iludamos, já ronda nossas próprias portas.

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José Damião de Lima Trindade é Procurador do Estado, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, foi presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo – APESP, e é autor de “História Social dos Direitos Humanos” (Editora Peirópolis, SP. 2ª edição, 2006).



[1]Silvia Hunold Lara (organizadora), “Ordenações Filipinas, Livro V”, 1999, São Paulo, Companhia das Letras, págs. 151 e 254.

[2]Albert Soboul, “A Revolução Francesa”, 7ª edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, pág. 48.

[3] Citado por T. H. Marshall in: “Cidadania, classes sociais e status”, Rio de Janeiro, Zahar, 1967 pág. 78.

[4] Eric J. Hobsbawm, “A Era das Revoluções”, 9ª edição, Paz e Terra, São Paulo, 1996, págs. 186-187.

[5] T. H. Marshall, op.cit., pág. 72.

[6] Eric J. Hobsbawm, op. cit., pág. 263.

[7] Só para ficar em exemplos brasileiros: a greve geral paulista de 1917 e a greve nacional de 1918.